quarta-feira, novembro 22, 2006

Morningstar

Um pequeno som metálico traz a chama alaranjada que ilumina a face daquele que se encontra em um ambiente mais escuro. Os olhos claros aos poucos se erguem para observar de soslaio aquele local que está mais lotado que o próprio Inferno. Seria uma bela noite para descobrir algumas almas atormentadas ou ao menos corrompê-las, mas estaria ele naquele ambiente para corromper as almas?
O sorriso é contido, enquanto a fumaça cancerígena atinge seus pulmões. Com a outra mão repuxa os fios dourados de seus cabelos, acariciando-os como alguém que parecia extremamente cansado de tudo aquilo. Por que não dizer que ele gosta da franja um pouco mais longa, para que a mesma teime cair à frente de seus olhos? Poderia estar sendo sarcástico com as pessoas com quem ele conversava ou não, pois ninguém jamais saberia se ele está falando a verdade ou não, mesmo ele mantendo os olhos tão visíveis para aqueles que sempre o buscavam.
- Olhar...
Aos poucos a fumaça esbranquiçada escapa por seus lábios entreabertos, subindo diante do olhar que buscava mais do que uma simples conversa, mais do que o simples tocar das claves de um piano.
- Janela do mundo, Janela da Alma.
O Cigarro cai espalhando algumas de suas brasas naquele chão em que ele se encontrava. Logo o cigarro é pisado por sapatos negros e polido, os quais deixam ecos para trás. Ecos que se juntam às milhares de almas que uivavam em seus prantos condenadas ao eterno sofrimento.
- Venha a nós o vosso Reino...
Murmura de forma sarcástica aquela frase, deixando que o ambiente finalmente o envolvesse em sua perversão.
Os ecos de seus passos pareciam retumbar nas almas dos desavisados e os olhos voltados àquele homem de porte belo e esbelto, com o semblante sério mas ao mesmo tempo charmoso e enigmático, não conseguiam desvencilharem-se enquanto ele caminhava em direção ao piano negro que se encontrava ao centro do ambiente.
Os olhos dele passeiam no ambiente, enquanto as pessoas pareciam murmurar algo.
Mais uma vez o som metálico e a chama alaranjada. Mais uma vez a fumaça subindo diante dos olhos de um azul tão intenso e enigmático. Morningstar poderia ter tantos nomes quanto lhe fosse possível, mas as pessoas estranhamente não perguntavam o seu nome e nem teriam porque ousarem em tal questão. Um cinzeiro é posto próximo a ele e o sorriso surge fino em seus lábios. Não precisava agradecer. Ela sabia o quanto ele lhe era grato por tão pequeno gesto.
“I've been so many places in my life and time
I've sung a lot of songs, I have made some bad rhymes
I've acted out my life in stages with ten thousand
people watching
But we're alone now and I'm singing this song for you”
O silêncio por um momento reina, quando a voz de Morningstar se propaga pelo ambiente. Ele esquecia o resto do mundo naquele momento. Esquecia os problemas que surgiriam, pois ele sabia que naquela noite ele receberia uma visita especial e tal visita era intrigante.
“I know your image of me is what I hope to be,
I've treated you unkindly
But girl can't you see, there's no one more important
to me
So darling can't you please see through me, 'cause
we're alone now
And I'm singing my song for you, you taught me
precious secrets”
Seus dedos deslizavam pelas claves do piano, enquanto ele cantava aquela canção. Muitas mulheres poderiam suspirar apaixonadas naquele momento, mas Morningstar, sabia que muito em breve aquela canção não iria significar nada para ele e o mover das peças no tabuleiro poderiam ser proveitosos para ele.
“The truth withholding nothing, you came out in front
When I was hiding, but now I'm so much better
So if my words don't come together, listen to the
Melody”
Morningstar podia sentir aquele cheiro a uma distância considerável, então era ela quem surgia para conversar com ele?
O sorriso se alarga nos lábios, quando ele observa o cigarro quase todo queimado. Sem cerimônia alguma, encerrava a canção que estava a cantar, pedindo um Martini à sua ajudante, enquanto pôs-se a caminhar a uma mesa que parecia sempre disponível a ele.
Sentava-se à mesa e logo sua bebida era servida. Seus olhos indicavam àquela criatura que não queria ser interrompido e a mesma em sua devoção meneia a cabeça em afirmação se afastando enquanto outra mulher sentava-se à mesa.
- A que devo a honra de sua visita?
Morningstar acendia com calma outro cigarro, acendendo em seguida o cigarro que aquela mulher puxava. Divertia-se observando aqueles olhos cinza e tempestuosos que seriam capazes de tirar o colorido da vida. Era raro ele receber uma visita dos Irmãos.
- Você sabe!
A voz vinha de modo frio em um sussurrar quase inaudível. Ele sabia e em certo ponto se divertia com tudo aquilo. Aqueles irmãos não costumavam interferir na vida dos mortais, mas uma pequena criança parecia ter sido abençoada por eles. Apenas aquela que estava diante dele, ainda não tinha compreendido que ela também abençoou aquela criança.
- Está fora de minha alçada.
Responde com calma Morningstar, observando Cecile nos olhos. Podia ver a fúria se instaurando aos olhos daquela mulher. Mas ela sabia se conter. Não falava mais do que o necessário e a noite prometia tanto a ele.
- Está com medo, Estrela da Manhã?
A taça era levada aos lábios e o gosto seco daquela bebida era sentido por Morningstar. Era engraçado para ele se ver naquela posição.
- Você sabe que não.
Soltou de forma calma, repousando a taça sobre a mesa.
- Então?
Morningstar ao escutar aquela palavra tão curta, cruza um dos braços enquanto o cigarro se mantém aceso perto da face dele. Olhava dentro dos olhos de Cecile. Sabia o que tal ato poderia vir a causar, mas o jogo continuava e ele não poderia parar o que foi iniciado.
- De tempos em tempos, a crença da humanidade é testada. Tudo em que se acredita pode deixar de existir com um simples abalo nas almas dos mortais. Magia, deuses e até mesmo o tudo, pode vir a ser o nada. Antes da aparição dos perpétuos, existia o nada. O Nada pode ser o único que sobreviva ao findar dos tempos, mas o mesmo não quer voltar à condição que ele vivenciou por tantos milênios.
Morningstar achava estranho ter que contar aquela história. Mas se ao findar da história, Cecile se mantivesse arredia, então ele nada mais poderia fazer. Tudo iria depender de Destino. Ela estava o escutando e era de continuar o espetáculo.
- Então surgem pessoas. Pessoas que acreditam naquilo que poucos acreditam. Pessoas que vêem a beleza que poucos vêem.
- E o que a criança tem haver com tudo isso?
Morningstar abre um largo sorriso. Apagava o cigarro se erguendo da mesa.
- Por que você quer destruir a única pessoa que seria capaz de te dar um abraço sincero e te compreender por aquilo que você é?
Cecile por um momento observa-o com sua alma dilacerada por aquela simples frase. Os pensamentos da mulher ficam confusos, enquanto as lembranças daqueles últimos dias rasgavam seu coração. Cada bronca que ela recebeu de seus irmãos. Cada momento em que seu coração pareceu sofrer da mesma forma que ela fazia os corações sofrerem.
- Em meio ao mundo cinza dois irmãos se encontravam. Um perfume parecia tão agradável tão diferente do outro perfume que deixava o mundo cinza como o cinza das nuvens em dias nublados e que parecem chorar. Tanto pelos que partiram quanto pelos que ficaram.
Cecile ergue os olhos incrédulos ao escutar as palavras de Morningstar. Ele sorria com os cantos dos lábios, enquanto voltava para o piano e mais uma vez punha-se a cantar.
“I've been so many places in my life and time
I've sung a lot of songs, I have made some bad rhymes
I've acted out my life in stages with ten thousand
people watching
But we're alone now and I'm singing this song for you
I know your image of me is what I hope to be,
I've treated you unkindly
But girl can't you see, there's no one more important
to meSo darling can't you please see through me, 'cause
we're alone now
And I'm singing my song for you, you taught me
precious secrets
The truth withholding nothing, you came out in front
When I was hiding, but now I'm so much better
So if my words don't come together, listen to the
Melody”.

Aislinn... Uma Criança Abençoada

Corria pelo parque em mais uma manhã de sol. Sempre gostava de ir àquele lugar que parecia tão mágico. Quantos caminhos diferentes já tinha feito, descobrindo em cada lugar novo um pequeno tesouro? Seus olhos se enchiam de brilho com tesouros jamais vistos. Mas naquela manhã os tesouros seriam muito mais que Aislinn poderia esperar.Estava ajoelhada, com a cabeça baixa a espiar. Observava um pequeno inseto que parecia tão colorido que não podia deixar de admirar.
- Olá pequenino!
O pequeno inseto saía a voar e no acompanhar dos olhos da pequena Aislinn seu corpo se erguia e ali ela podia ver aquele gentil homem que sentava ao mesmo banco todas as tardes, carregando consigo um grande livro.
- Aengus!
Seu coração disparava com a visão daquele homem de grosso casaco amarronzado que abria a sacola, retirando lá de dentro o livro pouco antes do iniciar da grande algazarra. Seus pés ligeiros se moviam, corria para não perder mais uma história que ele fosse contar. Lembrava-se da primeira vez que tinha visto Aengus naquele parque. Lembrava-se da estranha sensação que acometia seu coração em tamanha felicidade. Tinha certeza nas incertezas, tinha Aengus como o melhor amigo que possuía. Todos se sentavam e Aislinn tinha a certeza de que os olhos de Aengus repousavam sobre ela enquanto iniciava uma história antes mesmo dela chegar. Mordia os lábios, mas perdoava Aengus, pois sabia que o mesmo era cego. Não podia exigir que ele a esperasse para iniciar uma história enquanto tantos outros imploravam. Com calma passava por entre as outras crianças de sua idade. Quando não outras mais novas que se encontravam com seus irmãos, ou até umas crianças mais velhas, pois assim o eram em suas almas mesmo tendo a carcaças de adultos em seus corpos.
- Ele vê as coisas como são, foram e serão. E foi o senhor das coisas que não foram e jamais serão. Destino é uma divindade cega, inexorável nascido da Noite e do Caos...
Não compreendia por que as crianças riam. Crianças como ela que escutavam aquela história. O que poderia haver de tão engraçado naquela história que ela pegou tão bem encaminhada. Aislinn mordia os lábios. Tinha uma dúvida, mas com tantas pessoas ali, seria certo perguntar? Aislinn então puxa a barra da calça de Aengus um tanto quanto determinada, pois se deixasse para depois poderia não ter a chance de perguntar.
- Destino é cego como você, Aengus?- Shhhhh!! Deixa ele continuar...Era o que ela já esperava. Todos queriam escutar a história que Aengus contava. Podia ver aqueles olhares que mostravam sua ansiedade e que não deixariam Aengus responder a sua pergunta com o insistente coro:
- Continue!! Continue!!
Suspirava depois de escutar o insistente coro. Mas o que ela poderia fazer? A voz dele era tão gostosa de escutar, seria capaz de dormir ali, sentada ao chão e recostada ao banco só escutando aquela voz que lembrava o farfalhar de velhos pergaminhos ou das páginas de um livro à medida que iam sendo lidos.
Aislinn sente a mão dele encontrando os seus cabelos anelados e por um momento sentia o afagar dos cabelos. Ele voltava a ler para as crianças que sempre buscavam conselho ou histórias, mas para Aislinn, as palavras ganhavam um significado mágico.- Todas as outras divindades estavam submetidas ao seu poder. Os céus, a terra, o mar e os infernos faziam parte do seu império. O que resolvia era irrevogável. Em resumo, o Destino era por si mesmo essa fatalidade, segundo a qual tudo acontecia no mundo.Aislinn estava mergulhada em sua imaginação escutando aquela história contada por Aengus. Sorriu ao pensar que agora poderia ser ela a estar fazendo “Shhh”! Para os outros ficarem em silêncio, mas seus olhos conseguiam ver que todos se continham para escutar aquela voz que poderia muito bem embalar a todos se ele estivesse a ler ao pé de uma cama.
- Júpiter, o mais poderoso dos deuses, não pôde aplacar o Destino nem a favor dos outros deuses, nem a favor dos homens.
Por um momento, Aislinn esqueceu que Aengus afagava seus cabelos e erguia a cabeça olhando para ele. Um pouco assombrada com o que ele dizia.
- Mas... Mas... Ele é o pai de todos os deuses. Como? Como não pôde aplacar Destino?
Aengus não parecia se abalar com as dúvidas que Aislinn possuía e era isso que a pequena mais admirava em seu amigo. Mais uma vez ela o sentia afagando seus cabelos e aquilo parecia acalmá-la um pouco. Seu coração ainda estava acelerado com tantas dúvidas que surgiam naquela história, mas continuava escutando a história.
- As leis do Destino eram escritas desde o princípio da criação em um lugar onde os deuses podiam consultá-las. Os seus ministros eram as três Parcas encarregadas de executar as ordens. Representam-no tendo sob os pés o globo terrestre, e agarrando nas estrelas, um cetro, símbolo do seu poder soberano.
Ah! Como era difícil conter suas dúvidas em seus lábios mordidos, mesmo com Aengus parecendo querer acalmá-la com os afagos em seus cabelos. Rebuscava o ar e interrompia mais uma vez a narrativa de Aengus, mas logo era repreendida por todos os outros. Por que era tão difícil a eles deixarem com que ela enriquecesse os detalhes? Será que tinham medo de saber mais coisas?
- Para mostrar que era inflexível, os antigos o representavam por uma roda que prende uma cadeia. No alto da roda uma grande pedra, e embaixo duas cornucópias com pontas de azagaia. Conta Homero que o Destino de Aquiles e de Heitor é pesado na balança de Júpiter, e como a sorte do último o arrebata, sua morte é decretada, e Apolo retira o apoio que lhe dispensara até então. São as leis cegas do Destino que tornaram culpados a tantos mortais, apesar do seu desejo de permanecerem virtuosos: em Ésquilo, por exemplo, Agamemnom, Clitemnestre, Jocasta, Édipo, Eteoclo, Polínice, etc... etc... etc... Que não podem fugir à sua sorte.Estava decidida. Não deixaria mais suas dúvidas para trás. Aislinn já levava a mão para puxar desta vez a barra do casaco de Aengus, quando o sonoro grito dos pais não só das crianças, mas dela também chamavam para ir embora. Ela parava a mão no ar, crispando os lábios e os mordendo retraía a mão e se erguia. Ninguém queria ir, todos contestavam, mas Aengus como sempre dizia palavras sábias e Aislinn podia escutar aquele puxão de orelha que ele dava em todos de forma gentil.
- Não sejam arredios, pois muito vocês ainda precisam trilhar para que seus próprios passos possam dar sem a devida proteção de seus pais, ou as mãos que os reerguerão quando caírem nas trilhas incertas.Aislinn sorria, ficava encabulada, escutava aquela algazarra que todos faziam em suas despedidas, escutava os adeus e Aengus dizendo mais uma vez com sua sabedoria.
- O Adeus é uma palavra longa demais para ser dita. Até breve é o que espero e hei de esperar.- Até breve, Aengus!Ela murmurava sorrindo, se afastando. Não conseguia ficar muito tempo sem olhar para trás. Via os lábios de Aengus murmurando algo. Algo que ela queria ter escutado, mas parecia escutar mesmo tão distante. Franzia o cenho como se naquele momento estivesse perdendo um de seus tesouros mais valiosos. Não conseguia escutar as palavras de seus pais que agradeciam aos deuses por Aengus ter surgido na vida de muitas crianças. Queria poder voltar, tinha tantas coisas para perguntar. Tantas coisas que ficaram presas em sua garganta, mas Aengus apenas se erguia indo embora, escapando de seus dedos e ela escapando dos afagares que ele fazia em seus cabelos. A noite se aproximava rápida e nem mesmo depois do asseio e do jantar, nem mesmo depois da história contada por sua mãe, fazia-a esquecer a última história contada por Aengus. Aislinn temia em seu coração que aquela tenha sido a última história que ele contaria no parque, mesmo ele dizendo até breve. Enrolava-se nas cobertas, mordendo os lábios e vendo as sombras que se projetavam à parede do quarto. Aos poucos os olhos pareciam ficar pesados, mesmo sentindo tanta angústia no coração, mesmo sabendo que precisaria acordar no dia seguinte bem cedo para ir a um passeio. O sono a alcançava. Alcançava-a com o afagar de seus cabelos que parecia a embalar em um sono arredio. Logo viriam os sonhos, mas seus temores pareciam trazer o pior de seus pesadelos. Estava à frente do local que iria no dia seguinte. Estava ao mesmo tempo, mais distante dali. Via um homem de cabelos vermelhos intensos, tão vermelhos quanto seus cabelos. Ele parecia olhar para cima. Parecia ver aviões que voavam no ar. Podia sentir o aperto que ele sentia no coração. Podia sentir a angústia que ele sentia. Seu coração se acelerava, sentia aquela dor em seu peito. Por que tanta dor? Por que tanto sofrimento? Ele repetia não e a cada não ela queria despertar, não conseguindo. O mundo pareceu ficar mudo enquanto a dor apenas parecia aumentar, queria gritar enquanto o mundo desabava ao redor e muitas vozes pareciam gritar. Gritos de dor. Gritos de desespero. O mundo desabava diante dos olhos dela e daquele homem que gritava a pleno pulmões um sonoro não, queria chorar diante da dor que ele sentia. Encolhia-se naquele pesadelo que apertava seu coração como se a dizer que ela não mais veria Aengus ou seus pais, mas uma voz parecia chegar aos seus ouvidos como o embalar de um bebê ao colo paternal.
- Muitos nomes eu possuo. Sandman, Oneiros, Kai'Ckul, Morpheus... Mas não sou o Morpheu que vive no mundo fantasioso ao qual chamam de Matrix e nem tão pouco Sonhar seria como aquele mundo que tantos parecem adorar.
Aquilo parecia a acalmar, parecia fazer aquele pesadelo desaparecer. Fazia aquela angústia sumir.
- Alguns me chamam de Moldador de Sonhos. Enquanto na cultura Grega sou filho de Hipnos. Hans C. Andersen dizia que não há ninguém no mundo que saiba tantas histórias quanto eu sei e que de noite, quando as crianças ainda estão à mesa, muito quietinhas, ou sentadinhas em seus bancos, que eu tiro os sapatos e subo a escada muito devagar, abrindo a porta sem fazer barulho e soprando areia nos olhos delas.
Aquela voz que escutava, parecia ser tão calma. Parecia estar tão próxima a ela, quanto um irmão mais velho a zelar o sono do caçula. Trazia tanta segurança, tanto conforto. Parecia aquecê-la na noite que por breves momentos seu corpo estremeceu.
- Bons sonhos criança...- Boa noite Morpheus...
Aquele desejar de Boa noite veio tão natural a ela que nem mesmo se assustou quando sentiu a mão em seu ombro enquanto seu cobertor era puxado.
- Acorde Aislinn, não vai querer perder o seu passeio, vai?
Aislinn se espreguiçava e sorria, esfregava os olhos tentando espantar as areias do sono. Pulava da cama sem lembrar do pesadelo que teve, ou se não a mesma imploraria para ficar em casa naquele dia. Arrumava-se e depois corria para tomar o café.
Estava ansiosa para aquele passeio, a sua escola estava planejando ir naquele local tinha um mês. Olhava para os lados, movendo os lábios de forma silenciosa. Queria que o ônibus chegasse logo. O ônibus nem deixaria os alunos descerem na escola. Lá eles pegariam a professora e finalmente partiram para o destino daquele dia. Aislinn mais uma vez contava para as amigas da sala, sobre Aengus. Elas riam dizendo que Aislinn estava apaixonada e a mesma avermelhava-se tanto por raiva, quanto por vergonha.
- Parem com isso! Aengus é meu amigo. Um amigo muito importante. Se vocês o conhecessem também ansiariam para encontrá-lo mais uma vez.
Mais risadas eram dadas e a bagunça era grande. Gwen sorria olhando-os tão exaltados, estavam indo em uma hora calma para que a aula pudesse ser mais proveitosa.
- O World Trade Center é um complexo de edifícios, construído no início da década de 1970, localizado aqui em Manhattan. Dos 7 edifícios que compõe o complexo, destacam-se as duas Torres Gêmeas com 110 andares, consideradas um dos ícones da economia norte-americana. Elas foram idealizadas pelo arquiteto japonês Minoru Yamasaki, e nelas costuma-se trabalhar diariamente cerca de 50.000 pessoas. O Wolrd Trade Center foi considerado o maior prédio do mundo durante os anos de 1972 e 1973 tirando o posto do Empire State Building que foi construído em 1930. O Empire State Building era considerado o maior prédio de Nova York durante 40 anos.
Nunca o silêncio foi conseguido de forma tão rápida. Aislinn admirava a forma que sua professora Gwen conseguia a atenção. Suas aulas sempre eram as mais gostosas de serem escutadas e a voz de sua professora possuía o dom de conquistar a confiança de seus alunos. O ônibus parava diante das torres gêmeas e todos desciam observando aqueles enormes prédios, enquanto a explicação continuava.
- As Torres Gêmeas possuem 198 elevadores, 99 em cada torre, distribuídos em 2 lobbys. Na Torre Norte existe no 107º andar um luxuoso restaurante onde há grandes almoços de empresários mundiais. Tal restaurante é apelidado de Windows on the World, devido a o fato de ser o restaurante mais alto do mundo.
Os alunos olhavam na direção da torre norte soltando suas interjeições admiradas com as informações dadas por sua professora.
- Na Torre Sul existe um observatório apelidado de Top Of The World que fica a 420 metros de altura onde os visitantes têm uma visão de 360º de toda a cidade de Nova York, nele também tem uma proteção anti-suicida.
Algumas poucas risadas e comentários sobre por que as pessoas iriam cometer suicídio faziam Aislinn sentir um pequeno calafrio. Suas mãos esfregam os braços, como se espantando um frio que não queria deixá-la naquele dia ensolarado. A voz de sua professora parecia ir se abaixando cada vez mais aos seus ouvidos.
- Na Torre Norte há uma antena de TV de 90 metros instalada em 1978, ao todo a Torre Norte possui, contando com a antena de TV, 417 metros de altura enquanto a Torre Sul possui 415 metros...
Os olhos de Aislinn se arregalavam quando tudo parecia ficar mudo e ela podia ver as suas amigas correrem. Seu coração acelerava, quando ela erguia os olhos e via o mundo desabar sobre eles. Naquele ínfimo segundo, enquanto as lembranças pareciam passar diante de seus olhos, enquanto o mundo ficava cinza e depois se escurecia, Aislinn se recordava de Aengus contando a história de Destino. Recordava-se do rapaz de cabelos vermelhos gritando não diante daquela mesma cena que ela via. Lembrava-se do conforto que sentiu enquanto escutava uma outra história enquanto dormia. Seu coração gritava desesperado um grito que não escapou de seus lábios naquele negro mundo. Até o coração parecer não ter mais forças para gritar. Seus olhos queriam abrir, seu corpo queria reagir. Sentia um doce aroma de pêssego colhido no verão. Um aroma que ela desejava alcançar para dizer que aquilo era apenas um pesadelo. Mas se sentia acuada, sozinha naquela escuridão. Gritos... Gritos ela podia escutar envoltos em um aroma cítrico que havia no ar. Seu corpo se movia em meio a tanta dor de alguma forma mesmo não conseguindo reagir. Parecia frio, mas o frio a abandonava aos poucos o seu corpo no embalar de uma voz feminina e suave. Melancólica mas confortadora. Alguém que parecia a embalar em um novo sono para que ela esquecesse todo aquele pesadelo.
- É apenas isto. Se você vai ser humano, tem um monte de coisas no pacote.
Parecia tão confortável estar naquele colo, toda dor desaparecia enquanto seu rosto era acariciado por quem quer que estivesse a desenhar os contornos de sua face, contando-lhe uma nova história. Podia sentir a tristeza suave que aquela pessoa possuía, mas de alguma forma sabia que ela sorria.
- Olhos, um coração, dias e vida. Mas são os momentos que iluminam tudo. O tempo que você não nota que está passando...
Como era gostoso aquele afagar de cabelos que ela recebia. Afagos tão suaves quanto os afagares de Aengus, de seus pais e de quem acalmou seus sonhos um pouco antes dela despertar.
- É isso que faz o resto valer, pois quando a última coisa viva morrer, meu trabalho estará terminado.
Era um colo tão gostoso. Uma voz que parecia tão conhecida. Como poderia ter se esquecido daquilo um dia? Aislinn sentia o conforto naqueles braços. Braços que já a embalaram uma vez e que afagava o seu rosto como já a afagou uma vez.
- Então, eu colocarei as cadeiras sobre as mesas... Apagarei as luzes... E fecharei as portas do universo, enquanto o deixo para trás. Tinha a sensação de flutuar. Flutuar no vazio e escuro silêncio, aonde a única voz que ela ouvia, era aquela voz que lhe contava aquela história. Nova história. Velha história. História que estava chegando ao fim, com o beijo que sentiu em sua fronte.
- Mas a morte não é o fim de tudo. Não mais é o fim nestes tempos vividos, pois a morte é apenas o início de uma nova vida...
Mesmo que a sensação de angústia parecesse querer voltar por conta do afastar daqueles braços que trouxe tanta segurança para sua alma, aquele flutuar que Aislinn sentia parecia ficar tão gostoso com aquele cheiro de pêssegos. Parecia trazer tanta segurança e conforto, pois agora ela sabia que veria seus pais de novo. Sabia que poderia ir ao parque mais uma vez. Poderia continuar achando seus pequenos tesouros, sentir o amornar da pele com o toque gentil do sol. Poderia mais uma vez sentir os braços do vento a abraçarem carinhosamente. Aislinn sorria ao ver Gwen sorrindo naquele mundo que parecia ficar mais colorido. Dizendo-lhe aonde poderia encontrá-la e pedindo que cuidasse de Arthur. Muito tempo elas conversaram e quando se despediram, Aislinn tinha certeza, certeza nas incertezas de que ganhara muitos amigos. Mesmo quando um dos amigos ainda compreenderia porque ambas eram amigas. Estava feliz por conhecer tantas histórias. Estava feliz por conhecer os irmãos de Aengus, pois soube no fundo de seu coração quem eles eram, e não conseguiu mais parar de sorrir quando viu aquele mundo colorido surgir diante de seus olhos na companhia de uma moça tresloucada. Uma moça que estava a procurá-la por tanto tempo.
- Achei que não me encontraria...
A moça tomava um susto e dizia coisas que pareciam não ter certa lógica em tudo aquilo.
- Vê? Meus cabelos parecem com os seus...
Aproximava-se dela e se abaixava para pegar uma mecha avermelhada, juntando com a mecha de seus cabelos. Mesmo aquela moça sendo tão louca, Aislinn não podia deixar de sorrir.
- Os seus são mais coloridos...
A moça ria com o comentário que Aislinn soltava dizendo coisas mais loucas ainda.
- Mas eu ainda não encontrei a Punk que eu perdi... Estaria ela aqui? Se não terei que procurar... Ai, ai, ai... Ai, ai, ai... Onde é que a punk se meteu?
- Talvez ela esteja em outro lugar. Talvez esteja perdida em seu olhar...
Aislinn não conseguia parar de admirar aqueles olhos tão diferentes de tudo que ela viu. Como poderia alguém possuir tanta alegria? Uma alegria que a contagiava, mesmo falando coisas que pareciam peças aleatórias de quebra-cabeças diferentes?
- Então? Quando foi que você ganhou isso?
Aislinn fechava os olhos sorrindo enquanto a moça apoiava os cotovelos na cama próxima a ela, não tinha idéia do que ocorria, mas respondeu a primeira coisa que veio à sua mente.
- Quando você saiu para me procurar e eu não estava lá. Mas estaria nas linhas de um livro ou estaria a sonhar. Pintaria uma tela que estava para se pintar. Seria a vida. Seria a morte. Teria medo mas encontraria a alegria. Então eu sempre estive lá. Apesar de que eu não sei aonde é o lá.
Recebia aplausos por suas palavras, como se tivesse acabado de entoar um ato de Shakespeare, sentia-se bem com tudo aquilo e então via a moça saindo desvairada e tresloucada.
- Não saia daí... Vou achar a Punk e voltar aqui...
Aislinn ria vendo o cachorro a acompanhar aquela moça desvairada e sorridente, não conseguia imaginar como aquele cachorro havia conseguido entrar lá, mas logo seus olhos estavam a buscar algo. Algo que ela sabia que tinha que procurar.
- Seria um sonho tudo isso? Como o sonho que vi?
A porta se abria e o colorido partia com um homem que entrava a observar. Os olhos de Aislinn se voltavam para lá. Não queria que aquele colorido sumisse, porque aquilo mostrava que tudo não era um sonho. Que estava em um hospital e que o homem que entrou no quarto parecia trazer de volta a sensação que ela sentiu no sonho de Tristan, a mesma sensação que sentiu quando o mundo desabou ao seu redor.
- Há muita tristeza em seu olhar. Assim como muita raiva há... O que deixou seu coração tão triste para sua alma ficar tão cinza como está?
O Homem abaixava os olhos com seus punhos a fechar. Aislinn podia sentir aquela dor que o corroia, enquanto os olhos dele ficavam a observá-la e por vezes se abaixando para não observá-la.
- Poderia contar uma história para mim? Minha amiga logo há de chegar.
Pedia de forma calma para poder afastar aquela sensação que sentia. Os olhos daquele homem erguiam-se com lágrimas observando-a. Ela via que a raiva desaparecia por um momento no olhar daquele homem, enquanto as lágrimas cresciam. Aislinn sentia que era ele. Sentia que precisava buscar algo nele. Buscar uma coisa muito importante, que ela não sabia o que estava a procurar. Só sabia que tinha algo a entregar para aquele homem, mesmo não sabendo o que entregar, sabia que entregaria para aquele homem, que tão triste estava em seu olhar, o algo que ela tinha que entregar.
- Sua amiga pode contar a história quando ela voltar.
Ele retrucava, conseguindo fazer com que Aislinn suspirasse e erguesse os olhos para o teto que estava tão branco naquele momento.
- Ela há de demorar... Perdeu algo que precisa encontrar.
Ele se aproximava e ela continuava com seu olhar perdido naquele quarto tão branco do hospital. Lembrava-se das coisas que aconteceram antes daquele quarto e seus lábios então se moveram.
- Era uma vez um homem que estava em um parque. Seus olhos tão cinzas pareciam azulados que se perdiam em um mundo que ele não podia enxergar. Um homem que parecia tão sábio e que tinha a voz como o farfalhar de velhos pergaminhos numa biblioteca tarde da noite. Quando as pessoas já tinham ido para casa e os livros começavam ler a si mesmos. Ele nos falava sobre Destino, um destino implacável que não podia ser aplacado, mas mesmo que pensassem isso sobre ele, Aengus apenas aponta os caminhos que podemos percorrer.
- Como?
Pela primeira vez Aislinn mesmo não tendo um livro diante de seus olhos, contava uma história que pedia para ser contada.
- O dia se punha a correr e o sono se aproxima sorrateiro. Ainda quando estamos sentados quietos a jantar, Gawain chega devagar. Nenhum barulho ele faz e tirando os sapatos ele sobe as escadas soprando suas areias para que nos sonhos ele possa nos embalar.
Ela sabia que aquele homem precisava escutar aquela história. Sentia que não estava sozinha. Sentia-se segura como se sentiu tantas vezes e precisava passar esta segurança para aquele homem que estava tão triste.
- Mas o coração se aperta aflito, quando sonhos se transformam em pesadelos. Em sono agitado ele grita, grita pelas pessoas que são feridas. Tristan nunca quis machucar as pessoas e jamais aceitou as telas que ele pintou. As pessoas ferem-se e são feridas enquanto o sono dele se agita com o coração que partia de tão acelerado que ficou.
Aislinn não via o quanto sua história fazia as lágrimas nos olhos daquele homem aumentar, mas sentia o que ele sentia, assim como sentia o conforto daqueles que pareciam tão próximos a ela enquanto contava aquela história.
- Em meio ao mundo cinza dois irmãos se encontravam. Um perfume parecia tão agradável tão diferente do outro perfume que deixava o mundo cinza como o cinza das nuvens em dias nublados e que parecem chorar. Tanto pelos que partiram quanto pelos que ficaram.
- Por favor... Pare... Pare... Eu não quero mais escutar...
Poderia parar de contar a história, mas se lembrava de Gwen que pediu a ela que cuidasse do marido que tinha ficado e sentia-se segura, pois tinha seus amigos por perto.
- Mas aprendi... Aprendi com a Kayleigh que são os momentos que iluminam tudo. O tempo que você não nota que está passando que faz o resto valer. Pois ela diz que a morte não é o fim e sim o início de uma nova vida.
Ela podia escutar o levantar do corpo daquele homem, podia sentir o coração dele acelerar, mas sabia que era ele. Era ele que tinha que receber aquela história.
- E aprendi com Gale que o mundo pode ser mais colorido. Mesmo quando achamos que perdemos algo. Pois quanto mais procuramos menos conseguimos encontrar e quando paramos de procurar enxergamos aquilo que sempre esteve lá.
- E o que eu procuro?
Escutava ele a perguntar sem mais forças para chorar. Então Aislinn teve a certeza. A certeza que seu coração poderia lhe dar.
- O brilho dos olhos que um dia você perdeu...
- E aonde posso encontrar?
Ele se erguia. Erguia-se a observando. Aislinn sentia as mãos dele segurando seus ombros, sentia o coração do homem que parecia tão ferido. Queria curar aquelas feridas, mas só poderia entregar o que tinha para entregar e ele gritava:
- AONDE POSSO ENCONTRAR?
Gritava levando as mãos ao rosto de Aislinn. Ela podia sentir aquele pressionar de mãos como se as mesmas pudessem esmagar seu rosto e ela sabia o que precisava fazer. Tocava a mão sobre o peito do homem, mesmo sentindo medo do que via naquele olhar.
- Ela está lá a te esperar. Ela está aqui a te olhar.
Ela via tanta dor naquele olhar que o homem possuía, e mesmo tendo medo, era ele. Ela tinha certeza de que era ele ao ver o sorriso de Gwen, ao falar que precisava encontrá-lo mais uma vez.
- Ela deseja te encontrar.
- QUEM? QUEM DESEJA ME ENCONTRAR?
Ele gritava com ela, Aislinn aponta na direção da porta, pois Gwen estava ali a zelar. O homem olhava para a porta para ver o que ela estava a observar. Arthur chora ao ver o que ele via. Chorava ao ver um mundo mais colorido. Chorava ao ver um sorriso que havia partido. Chorava com aquele brilho no olhar que ele achava ter perdido.
- Aí você está!!!
O cachorro latia e os enfermeiros corriam. Aislinn via Gale se aproximando e sorrindo, enquanto os enfermeiros carregavam o homem que se encontrava em prantos. Ao que parecia Gale não tinha encontrado a Punk, mas tinha encontrado alguém mais importante.
- Isso é um absurdo!!! Cachorros não podem ficar aqui!!! Isso é um hospital mocinha.
Gritava a enfermeira que possuía a alma tão cinza que parecia desbotar as cores do mundo para os olhos de Aislinn. Aislinn olhava para a porta, vendo Gwen a sorrir e a dizer que ainda precisava falar com Arthur.
- Já estamos de partida. Cuide de suas feridas... Não vê que Aislinn precisa de nós?
Aislinn sorri, enquanto seus cabelos são afagados por Gale. O sono chegava fechando seus olhos e mais afagos ela podia sentir. Sorria ao ver aqueles olhos tão escuros a observá-la. Sorria pois sabia que aquele era quem acalmou o seu sono.
- Gawain... Ele ainda precisa de mim.
Aislinn via Gawain sorrindo e se abaixando. Ele era bem alto. Mais alto que Aengus. Sentia ele segurar seu queixo e depois olhar para um lugar.
- Em breve você poderá encontrá-lo Aislinn.
Aislinn escuta alguns gritos e olha para Gawain.
- Elas ficarão bem?
Gawain sorri e meneia a cabeça em afirmação.
- Cecile não ousaria brincar com Gale.
Logo Aislinn tinha a mesma certeza, pois podia escutar a voz de Gale.
- Você conhece o caminho. Sabe como chegar. Mas não vá sumir ou vou ter que mais uma vez te procurar.
Olhava para Gawain que erguia aos poucos o seu corpo, fazendo o mundo moldar a volta deles. Ela sorria pois se lembrava de um dos nomes que ele possuía, e tudo se moldava de forma tão interessante nas mãos dele. Aislinn o abraçava e depois se despedia. Sabia o que tinha que fazer e outras pessoas estavam a esperar.
- Ela ficará bem?
Gawain observava a pequena se afastando e enfrentando reinos que poucos ousavam andar.
- Sim. Ela ficará!
Aengus sorria, tendo a certeza de que Aislinn tinha escolhido as trilhas certas.
Em algum lugar Aislinn dava as mãos para um homem. Sorria a observá-lo em seu enorme desnorteio.
- Venha Arthur! Venha! Ela está a te esperar!
Arthur segurava a mão da Aislinn e seguia seus passos. Observava o mundo que eles se encontravam em que nada lembrava o hospital.
- Isto é um sonho?
Perguntava desnorteado e Aislinn caminhava com toda a certeza que poderia possuir por aqueles reinos ao conduzi-lo.
- O melhor sonho que você pode ter, Arthur!
Aislinn sorria, pois o mundo que parecia tão escuro, aos poucos ia ganhando brilho. Arthur não sabia por que, mas a seguia. Queria ter certeza do que viu, antes mesmo de ser sedado pelos enfermeiros. Queria que o mundo fosse tão colorido quanto antes. Antes da morte de Gwen.
Arthur via o mundo ficar mais colorido, um mundo que parecia trazer um pouco mais de calor. Um pouco de conforto a sua alma que parecia tão estraçalhada por aqueles últimos dias. Arthur sentia a pequena mão de Aislinn escapar de sua mão e então sentir um abraço. Um abraço que fazia seu coração se aquecer enquanto podia ver Aislinn sentar-se em um balanço e começar a balançá-lo cada vez mais alto.
- Me desculpe Arthur! Eu amo você!
Arthur se virava e via diante de seus olhos aquele brilho que ele tanto buscava. Abraçava aquele corpo, desejando não mais solta-lo.
- Me desculpe Gwen!
Gwen abraçava Arthur e sorria.
- Tudo ficará bem. Estarei a zelar por você. Estarei a esperar por você. Eu te amo Arthur e sempre te amarei. Sou sua e sempre serei.
Arthur a olhava. Acariciava o rosto de Gwen com lágrimas nos olhos, escutava as juras que ela fazia naquele lugar.
- Eu serei o vento morno que irá te abraçar. O vento que enxugará suas lágrimas. Serei o sussurro que dirá boa noite meu amado. O conforto que terá em seu coração.
Ele sorria com aquelas palavras, elas pareciam trazer tanto conforto.
- Venha Arthur! Eu cuido de você até você poder encontrá-la de novo!
Arthur podia sentir a mão de Aislinn segurando sua mão e abaixava os olhos para ver aquela criança de cabelos vermelhos sorrindo para ele.
- Obrigado Aislinn!
Arthur então olhava para Gwen.
- Adeus Gwen!
Aislinn sorri.
- Não Arthur! O adeus é uma palavra muito longa para ser dita. Até breve é o que ela espera e há de esperar!
Gwen sorria, Arthur ri um pouco com as sábias palavras ditas por Aislinn e ao despertar no hospital o mundo pareceu mais colorido para Arthur. Um mundo que possuía cores tão vivas e aromas tão gostosos de sentir.

quinta-feira, novembro 16, 2006

Delírio


"Vejam, vejam eu criei borboletas. Borbo...leeeetas...."
-- Delirium -- Estação das Brumas.
Tribute to the Endless - By D.C. Vespa (06/12/04)

Desespero


"Um indivíduo perturbado pode olhar num espelho e ver Desespero como reflexo."
Tribute to the Endless - By D.C. Vespa (07/12/04)

Desejo


"Seres humanos são criaturas de Desejo. Eles se torcem e dobram como eu exijo. Se pensasse de outra forma, eu entraria em colapso, como delírio; ou abandonaria meu reino, como nosso irmão perdido."
-- Desejo --
Tribute to the Endless - By D.C. Vespa (12/12/04)

Destruição


"Eles podem se destruir sozinhos. Não é minha responsabilidade. Não é minha culpa"
-- Destruição --
Tribute to the Endless - By D.C. Vespa (13/12/04)

Sonho


"Aos amigos ausentes, amores perdidos, velhos deuses, e à estação das brumas; e que cada um de nós sempre dê ao demônio o que lhe é merecido."
-- Hob Gadling -- Estação das Brumas.
Tribute to the Endless - By D.C. Vespa (02/12/04)

Morte


"Ouço o som de poderosas asas".
-- Morpheus --
Tribute to the Endless - By D.C. Vespa (04/12/04)

Destino



"Todos os caminhos convergem para o Jardim do Destino".
-- Livro do Destino -- Crônica de uma morte anunciada.
Tribute to the Endless - By D.C. Vespa (05/12/04)

Uma Breve Explanação

Algumas pessoas possuem o dom das palavras. Outras pessoas possuem o dom nos traços desenhados com tanto carinho. Neste pequeno lugar, onde demonstramos a nossa paixão pelas personagens criadas por Neil Gaiman, sempre haverá espaço para que outras pessoas demonstrem o seu tributo às personagens que criam tanto fascínio em todos que aqui habitam. Conheci esta pessoa, que também fez um Tributo aos Perpétuos, graças à Georgiana. Os traços peculiares do trabalho deste rapaz (D.C.Vespa), devem ser conhecidos não apenas por nós admiradores dos Perpétuos, mas por todos aqueles que apreciam um bom trabalho. Espero que todos apreciem o trabalho dele, tanto quanto eu e a Georgiana apreciamos.
Grata pela atenção,
Tyr Quentalë

quarta-feira, novembro 08, 2006

SONHO

SONHO
Ele andava no escuro. A única coisa que tinha cores eram as imagens produzidas enquanto ele caminhava. Um túnel com milhares de imagens, encontros estranhos e desejos extraídos das sombras das mentes humanas. No entanto, ele estava preocupado com algo que não ia bem. Seu mundo estava em ordem, os sonhos eram tecidos como as teias das aranhas. Cada um trazia dentro de si uma vontade interna que se realizaria ou não. Então, a irmã mais velha surgiu no meio do nada e isso o fez ficar ainda mais preocupado.
- O que houve?
- Senti que algo estava estranho e...
Ele a encarou sério.
- Você não viria aqui só porque sentiu que um dos irmãos não está bem.
Ela deu de ombros.
- É verdade. Na verdade, eu estava curiosa... por que ajudou o mago? Você não é exatamente o tipo romântico. Está mais para o tipo amante vingativo: amem-me ou eu destruo.
Ele lançou um olhar duro para ela. Ela ultrapassava limites e barreiras perigosos, mesmo sendo a irmã com quem mais se entrosava.
- Isso já tem tempo. Por que ainda se pergunta?
- Por causa do preço que ele pagou e porque... bom, eu quero entender esta coisa do amor humano, da importância dele para estes seres... Você já o sentiu alguma vez.
Ele a encarou sério. Ela só podia estar brincando. Ela estava ali por curiosidade?
- Não sei explicar... você teria que entender as almas, os anseios, desejos... tudo que eles são. Por que não foi até Desejo? Talvez, ela (ou seria ele) pudesse explicar melhor?
Ela permaneceu quieta. Não, Desejo não estava de bom-humor, não depois do que Destino havia lhe feito, não depois de sua parte partida ter-lhe negado o que lhe era mais caro: o fim do amor eterno que haviam tido tanto quanto pudesse ter sido mantido.
- Você os entende?
Sonho olhou para as imagens que voavam por eles e observou imagens de assassinatos, perseguições, medo, angústia, amor, reencontros...
- Talvez! – ele respondeu com profundidade na voz. – O que exatamente você quer?
Ela fez uma cara de criança marota.
- Não! – ele disse com severidade. – Você sabe que interferir tem um preço!
Ela o olhou de soslaio.
- Eu não quero interferir.
Lá vinha o papo frouxo de “eu só quero entender...” e, no fim, ele estaria ao lado do mago, dando conselhos, quebrando maldições e enfrentando Destino de uma forma nada agradável. Desta vez, ele teria que ser firme com ela.
- Não vou interferir.
- Não precisa... é que... um deles... será que um breve momento? Nada?
Sonho suspirou. Era impossível tirar uma idéia da cabeça dela por mais que tentasse.
- Sem quebrar regra alguma... apenas em seu mundo. Digamos que é o pedido alguém prestes a fazer a grande travessia.
O pedido de alguém que morre. Poético e belo! Triste e louvável! Ele enfiou a mão no bolso. A chave ainda estava em seu poder e já haviam oferecido tanto por ela... mas, ele não havia decidido o que fazer com ela até que ele olhou para Morte de uma maneira singela. Havia sido um presente de Arcângelo para ele, um agradecimento. Ele ainda não havia cobrado seu preço. Ele retirou a chave do bolso e a prendeu em uma delicada corrente retirada de uma teia de sonhos e a pendurou, passando para a irmã de modo displicente.
- Tome! Ela fará com que entenda melhor.
Ela pegou e olhou a chave prateada e a pendurou no pescoço. No momento em que a chave encostou em seu peito, ela entrou no seu coração e ela se esticou de olhos fechados apenas absorvendo os seres humanos, entendendo seus sentidos e sentimentos. O tempo curto era o que fazia com que se movessem. Ela segurou a mão do irmão em agradecimento e ele a deixou solta.
- Eles podem se encontrar em um sonho e é tudo que lhe posso prometer, Morte.
Ela sorriu.
- Era tudo que precisavam.
Então, ele entendeu.
- Qual dos dois está em coma?
- A mulher! Venha.

Ele estava em um quarto de hospital como qualquer outro e o corpo de uma mulher jazia em cima de uma cama, ligado a aparelhos que apitavam. Não havia mais ninguém ali. Nenhum anjo. Nenhum demônio. Ele olhou para trás e percebeu que estavam em um lugar onde a Morte reinava. Finalmente, eles estavam em um prado verdejante. Uma mulher de saia vermelha destoava do verde brilhante, ela encarava algo à sua frente. Ele se aproximou sentindo uma brisa suave pousar sobre sua pálida face.
- É bonito aqui. – ele disse.
Ela não se virou.
- E então?
Ela era direta.
- Ela disse que tenho a opção rápida de partir e a opção sofrimento enquanto estiver ligada ao corpo. É lógico que sei disso tudo, mas, eu gostaria de dizer adeus e isso depende de você permitir...
Ele pensou em todas as vezes que almas estavam perturbadas porque não haviam tido a chance de dizer adeus, porque... e muitos outros haviam feito este pedido e ele havia concedido. Por que com ela parecia ser diferente? Por que ele hesitava naquele instante? Seria porque ela conhecia outros mundo e poderia... A irmã pousou a mão delicadamente sobre seu ombro.
“Não! Ela não vai usar seus talentos!”
Então, a paisagem foi se modificando para um lugar negro e profundo, para uma cidade destruída e destroçada. As pessoas andavam como zumbis e alguns poucos pareciam fugir de seres imaginários.
- Onde estamos? – ela perguntou assustada.
Ele não precisava responder. Ela percebeu logo que estavam em um sonho.
- Aqui? Você não poderia ter feito algum lugar menos...
Ele sorriu ironicamente.
- Você pediu uma despedida apenas e este é o sonho dele. O sonho que ele tem noite após noite após noite... O que você queria? A partir daqui, é com você. Só a guiei e seja breve.
Ela o encarou com raiva.
- Eu serei. Não se preocupe.
Ela começou a caminhar por entre os destroços. Teria que contar apenas com o que tinha no coração para alcançá-lo e, logo, no meio do caos e do armagedon, ela o encontrou debruçado sobre um corpo queimado. Ele chorava desesperadamente com uma angústia pouco comum.
- Não... não... não... – ele gemia.
Ela o tocou no ombro.
- Acorde! – ela disse. – Não tenho muito tempo.
Ele pareceu não ouvir e continuou debruçado. Ela lhe deu um tapa forte no rosto e ele pareceu entender que algo estava acontecendo. Ela sorriu e o levou para o gramado. Ele pareceu recuperar um pouco do senso e estava vestido de acordo.
- Estamos em um entre mundos, Arcângelo. Sinta o cheiro, a brisa...
- Por que meu sonho se modificou?
Ela suspirou tristemente.
- Porque foi uma espécie de último pedido.
Ele a encarou surpreso e a abraçou com força e com vontade. Depois, segurou o rosto dela entre suas mãos, incrédulo.
- É o fim?
As lágrimas surgiram no rosto dele sem que ele pudesse impedir.
- Não, você sabe que não é o fim. É só a carcaça que está quebrada... o que temos... ninguém nunca vai poder tirar... não é?
Ele continuava a abraçá-la com força.
- Mas...
Ela se afastou um pouco e encarou os olhos dele.
- É melhor assim. Nós não podíamos ter um ao outro por causa de nossas escolhas. Anos sem nos ver e ainda sentindo queimar o desejo... isto não era justo, era?
- Não... mas, ao menos, eu podia esperar.
Ela o abraçou e, finalmente, disse a frase que tanto temeu dizer enquanto estava viva.
- Eu amo você, Arcângelo. Sempre amarei.
- Eu... também... amo... você...

Sonho esperou o momento e devolveu Arcângelo ao sonho dele enquanto a irmã cuidava de Dandara. Ele as viu sumir no limiar de seu mundo e observou atentamente o que seguia no mundo dos homens.

Os aparelhos que mantinham Dandara viva pararam de apitar e a hora de sua morte foi decretada. Em outro canto do mundo, Arcângelo acordou e entendeu o adeus da amada. Apenas pegou o telefone e ligou um número que servia apenas para casos extremos.
- Por que não me avisou?
- Achei que não fosse necessário. – a voz disse friamente do outro lado. – Iria atrapalhar a missão.
Arcângelo estava irritado por não ter podido dizer adeus a Dandara e sabia que não podia simplesmente abandonar tudo aquilo porque haveriam conseqüências desastrosas. Ele havia feito uma promessa há muito tempo atrás.
- Por que não... – ele engasgou.
- Porque atrapalharia suas missões. Vamos, Arcângelo! Tenha tento... Cumpriu sua missão?
Sim, ele havia matado a mulher maldita, a última vândala dos espaços entre dimensões. Desligou o telefone e, pela primeira vez, em uma centena de anos ele deixava as lágrimas correrem. Ele era eterno. Dandara era humana. O que teria que fazer para que a Morte se aproximasse dele?
Sonho observou a cena impassível. Humanos! Quem os entende?

MORTE

MORTE
Dandara encarou a noite pela janela. Ele estava atrasado. Sempre atrasado e enrolado. Não haveria muito tempo e ele estava atrasado. Finalmente, um vulto apareceu no escuro. Um homem de cabelos castanhos e olhos azuis veludo escuro a encaravam. Havia um corte em seu rosto e ela passou a mão no corte.
- Onde estava?
- Aqui e ali, você sabe.
- Alguma aventura envolvendo alguma dama em perigo, imagino.
- Dandara, pare com o ataque de ciúmes.
Ela fez bico. Não que pudessem retomar o que havia acontecido no passado. Eles se amavam e isso era certo. Mas, o tempo e suas missões, diferentes como água e vinho, haviam feito com que se afastassem. A moça de cabelos densos e negros os observava com a imensidão de seus olhos. Ainda estava escondida. Eles a esperavam para perguntar coisas que só ela sabia e que era primordial para eles. Ela sorriu e tudo estava como deveria estar. Magos poderosos estavam se unindo, isto é, as almas estavam se encontrando e se juntando novamente. Um novo fim estava para começar. Ou seria um novo começo? Bom, para a moça encostada na parede não fazia diferença. Sonho estava ao seu lado apenas para lhe fazer alguma companhia.
- E aí, mana? O que está pegando?
Ela sorriu.
- Tenho que esperar.
Eles poderiam ter sido irmãos gêmeos: a mesma pele pálida, os cabelos negros azulados, os olhos profundos e escuros. Sonho cruzou os braços sobre o peito.
- Tem mesmo?
- Ah! Você é muito impaciente! Não precisa ficar...
- Estou curioso porque eles são...
Ela deu de ombros.
- Sim. Eles são o que você está insinuando e estão prestes...
Sonho a olhou surpreso.
- Amor acaba?
Ela deu de ombros.
- O que você me responderia?
Sonho não gostou do que a pergunta dela implicava. Eles continuaram a observar os magos e seus preparativos para encontrar o mundo suspenso dos espíritos.

Dandara riscou o pentagrama no chão com giz sem muita vontade e bufou.
- Por que nós dois? Por que a Ordem disse que tinha que ser nós dois?
Ele a encarou com uma certa pena. Era o preço que tinham que pagar pelo conhecimento.
- O que você acha?
- Porque se eu me perder, você seria o único capaz de me encontrar porque nossas almas compartilham o mesmo selo.
Adonis pode perceber uma pequena lágrima no olho dela e não se manifestou. Dandara tinha a tendência a se apegar demais às pessoas de sua vida. Ela se sentou no meio do pentagrama e colocou as ervas e os elementos perfeitamente em cada ponta da estrela com um certo desapontamento. Adonis estava cauteloso e checava tudo detalhadamente. Ele não poderia demonstrar o quanto aquela missão o atingia de forma angustiante. Dandara era e sempre seria um pedaço dele, um pedaço que buscava desde que os deuses haviam separado as almas como Platão descrevia. Havia séculos que um sentia fome pelo outro, um desejo quase desajeitado e afobado que o tempo jamais apagara e aquele momento seria a prova concreta de que tudo poderia se desvanecer. Dandara retirou as roupas menos as cobras de metal dourado que cobriam seus braços. Era parte da força da grande sacerdotisa que era. Ela se deitou no chão como nos desenhos de da Vinci e cerrou os olhos. Ela sabia que ele gostaria de ter lhe dado um beijo antes. Mas, o círculo estava fechado e ela precisava se concentrar. Adonis circundou a estrela entoando o feitiço e Dandara sentiu o vapor a levar. Em um outro instante, ela estava na sala da casa dela mas não estava lá como nos sonhos que ficam dentro de sonhos...

Uma moça bonita de cabelos negros e olhos profundos sorriu para ela, uma moça de calça jeans, camiseta escura com alguma estampa brilhante, um ank no pescoço. A moça se sentou com as pernas cruzadas displicentemente.
- Por que me chamou? Você sabe... todo fim tem haver comigo...
- Qualquer fim?
A moça parou para pensar um pouco.
- O que tem em mente?
- A maldição de Totham... no Egito Antigo...
A moça do cabelo preto assobiou espantada. Era algo inesperado.
- Hum... eu não faço encomendas. Tudo tem sua hora. Você sabe. São as regras.
Dandara sorriu tristemente.
- Eu sei disso. Mas...
- Não me meto em assuntos humanos. Você deveria saber disso.
Dandara desistiu. Havia valido, ao menos, tentar. Muitos envolvidos estavam mortos e amaldiçoados. O tempo e o destino tomaria conta de tudo no tempo certo. Ela não estava suspensa no estado de quase morte apenas para tentar acabar com uma estúpida maldição. Sua missão era outra.
- Preciso que me leve ao mundo dos mortos.
A moça franziu a testa. Ela sabia que Dandara não era uma bruxa de poucos poderes até mesmo pelos segredos que guardava e por ser guardiã de coisas grandiosas. O que ela buscaria aonde as almas repousavam?
- Eu não sou nenhum guia. Você bem o sabe... Eu apenas estou por perto para as direções.
- Preciso ir até o barqueiro. Trouxe tudo de que preciso comigo.
Ela encarou a jovem à sua frente.
- E você não vai me enganar, não é? Tipo... você não vai resolver a maldição...
- Não! – Dandara respondeu tristemente. – São outras razões.
- Trazer alguém de volta?
Dandara suspirou.
- Não! Também não! – vencida pela moça de olhos penetrantes nada mais restava a não ser dizer a verdade. – Só preciso perguntar uma única coisa a uma alma que lá se encontra. Apenas ela tem a resposta e caso eu falhe... bom, terei falhado com um mundo.
A moça vislumbrou a morte de um mundo bom, belo e especial. Vislumbrou que era chamada e que, em breve, tudo estaria morto. Ela suspirou.
- O fim está próximo, você sabe... Eu não posso impedir.
Dandara deu o primeiro sorriso esperançoso.
- Mas, eu posso!
Uma sobrancelha da moça arqueou e ela olhou para o homem de cabelos negros e de olhos que continham estrelas.
- Está bem. Mas, você sabe, quanto mais ficar lá, mais sua vida corre perigo... o barqueiro não é alguém muito simpático, aviso logo.
- Não preciso de simpatia. A ruptura de um mundo como este pode trazer sérios problemas para a humanidade. Um desequilíbrio que nenhum dos seus vai gostar muito... Será um verdadeiro desastre para ele. – disse encarando Sonho. A irmã mais velha olhou Sonho por sobre os ombros.
- Muito bem, então. Segure minha mão e vamos passear.
Enquanto Dandara segurou sua mão como se fosse uma criança, milhões de imagens apareceu para ela: bruxas que pareciam ser ela mesma, pobres infelizes, crianças maltrapilhas. Mal teve tempo de respirar enquanto as imagens apenas apareciam uma depois da outra.
- Você sabe o que está vendo?
Dandara assentiu com a cabeça. Ela sabia. Continuaram em silêncio até que se encontraram no píer de madeira perto de águas escuras, densas e perigosamente calmas. O barqueiro se aproximou ao ouvir o assovio da jovem.
- O que deseja, senhora?
A moça apontou para Dandara. O homem sorriu de modo pérfido e estranho.
- O último humano jamais voltou... Ei! Você é... – ele se surpreendeu.
- Sim. Eu sou quem você acha que sou. Vamos! Tenho pressa.
O barqueiro assentiu aquela passageira solitária enquanto Morte acenava para ela. Sentou-se no píer para esperar. Sonho se aproximou e permaneceu de pé.
- Por que fez isso?
- Porque é o destino dela. Vá cuidar do homem. – ela disse com alguma secura. Era tudo que tinha para fazer embora seu trabalho exigisse. A morte não era o fim eterno que muitos acreditavam ser, mas, havia um mundo para onde os mortos iam por um tempo para se acostumarem com a outra vida, uma espécie de spa, não exatamente no melhor sentido do termo.

Dandara ficou em silêncio durante sua jornada até a outra beirada daquele estranho mundo. O barqueiro a ajudou a descer e ela pagou a moeda.
- Espere aqui! Eu voltarei.
O barqueiro riu.
- Todos dizem a mesma coisa.
Ela o encarou com firmeza.
- Eu voltarei! – ela disse com firmeza na voz.
Então, de dentro do manto, ela retirou o cristal em forma de crânio que trazia consigo. Não era exatamente enorme, mas, perfeitamente esculpido.
- Muito bem! – ela gritou. – Venha!
Um homem encarquilhado surgiu. Seus dentes podres mostravam um sorriso falso e ela sabia que deveria enfrentá-lo.
- Eu vim em nome de Atlântida e você sabe porque estou aqui.
Ele sibilou uma gargalhada.
- Você destruiu mundos atrás de mundos por causa de sua sede insaciável pelo poder... tenho o que há de mais poderoso aqui. – apontou para o crânio no chão. – E o segredo absoluto do poder. Só quero uma resposta e você sabe a pergunta.
O velho sorriu de um modo nojento, aproximando-se e tocando Dandara.
- Preciosa... preciosa... tudo isto apenas para uma pergunta tola?
Dandara teria que ser paciente.
- Você sabe que não é tola. O conhecimento está no crânio e você o deseja desde tempos imemoriais. Se Agadaron não o tivesse trancado aqui, eu o teria feito de uma maneira muito pior.
Ele riu malevolamente.
- Mas, aprendi muita coisa aqui.
Ela levantou o pé em direção ao crânio.
- Não! – havia uma súplica em sua voz disfarçada.
- Primeiro, o crânio.
- Não! Só eu tenho a chave... o que você fez?
Ele sorriu.
- Você sabe... eu sugo. Sou um buraco negro...
- Não. Você fez muito mais do que apenas sugar.
O pé dela estava sobre o crânio. Ele se aproximou como uma cobra ligeira, imaginando uma forma de impedi-la.
- Você quer mesmo saber, não é?
Ela tinha algumas suspeitas, mas, precisava da confirmação e antes mesmo que ele pudesse responder, ela viu algo nos olhos dele, um brilho que uma criatura vil como aquela não deveria ter... ele havia engolido a essência da vida que ela tentava desesperadamente manter viva. Ele percebeu e se jogou sobre o crânio que ela destruiu.
- Não! – ela gritou. – Eu não vim barganhar! Você está morto.
Ele sorriu com fúria.
- Você não pode me matar. Eu já estou no mundo dos mortos e eu aprendi uns truques por aqui... – ele sorriu ainda de forma macabra ao encostar as unhas afiadas e podres em sua pele. – Você sabe... eu ainda sei usar venenos.
No entanto, Dandara trazia o punhal de todos os tempos, roubado dos elfos eternos e cravou na criatura ao mesmo tempo que aquele ser malévolo lhe arranhava a pele com um veneno mortífero do mundo dos mortos. Ao cravar-lhe o punhal, uma mulher esplendorosa saiu de dentro do homem pelos seus olhos e Dandara sorriu ao perceber que o fim não havia chegado, de que havia uma chance.

Uma moça de cabelos negros surgiu no foco de sua visão quando ela abriu os olhos. Nada parecia ter mudado.
- Muito esperta, moça! Quanta insolência!!! – a moça dizia com alguma revolta.
- Lamento! Mas, foi preciso... estou morta???
A moça suspirou.
- Não! Descanse.
Dandara fechou os olhos e sonhou com um mundo verdejante e feliz. Finalmente, ela se sentiu cair e aterrissou em um corpo retorcido pela dor, angustiado pelos sentimentos e gritou como se todo o inferno estivesse no corpo dela. Ela se acocorou, babando, defecando e vomitando, sentindo seu corpo ser queimado como nunca antes. O veneno do velho fazia efeito ainda em seu corpo, mas, algo a havia trazido de volta. Finalmente, ela mergulhou novamente no escuro, onde se viu em uma bolha dourada suspensa em postura fetal e descansou.
Um raio de sol atingiu seus olhos e ela acordou revitalizada e cansada. A última das grandes batalhas de uma guardiã da velha Atlântida. Adônis segurava seu corpo por perto como se ele pudesse salvá-la de si mesma. Ele a observou com novas rugas, uma expressão mais velha e uma mecha branca assomou-se em seu cabelo.
- Você envelheceu! – ele disse surpreso.
- Paguei o preço. – ela disse.
Ambos se abraçaram.
- Acabou, Adonis.
Ele assentiu tristemente. Mais uma vez, separados pelas próprias escolhas. Não se veriam nunca mais. Havia sido uma emergência e só ele sabia o inferno que passara para resgatá-la do mundo perdido em que havia se encontrado. Ele trazia uma nova cicatriz no seu corpo, uma que jamais partiria. Ele doara seu sangue mágico no outro mundo para salvar Dandara. Estava quase se esvaindo quando ela voltou para os braços dele. Dandara havia envelhecido mais de duas décadas para não deixar o mundo da magia real morrer. Ele viu a moça de cabelos negros por perto.
- Eu sou o fim. Eu sou o recomeço de tudo. Vocês não deviam temer o fim...
Ele a encarou.
- Não! Não deveríamos! Mas, você sabe... agimos de acordo com nossos Destinos.
Ela deu de ombros e sorriu amigavelmente.
- Agradeça a ele!
- Agora, você deve um favor a ele... e eu não sei se é uma boa coisa. Mas, enfim, o amor de vocês, humanos, é algo estranho... porque, na verdade, você deveria saber... nunca acaba!
Ela partiu e Sonho estava com ela.
- O que vai pedir para ele fazer?
- Ainda não sei.
Ela observou o delicado objeto de prata que ele entregara a Sonho.
- Ora! Um selo que abre todos os portais de todos os mundos! Que engraçado! Você realmente gosta de se meter em encrencas!
Ele a encarou surpreso.
- Não é a mesma coisa que ter a chave do inferno.
- Não! Realmente, não... mas, sua alma está a prêmio de novo. Todos vão querer esta chave porque ela não abre apenas os portais... ela também dá acesso a todas as almas...
- Shhhhhhhhhh! – ele fez. – Não fale em voz alta. Decidirei o que fazer no tempo certo.
Ela deu de ombros. Novas charadas e o dever a chamava. Muitos ainda esperavam por sua bênção.

DESTINO

DESTINO
Suas mãos rastreavam as páginas do livro enquanto a tempestade lá fora desabava como um coro nefasto e profano. Mas, Betânia não sabia o que procurar. Sentia as marcas das palavras no livro, letras diferentes. Nada havia ali e havia apenas uma chance dela reconciliar todas as grandes besteiras que a irmã mais velha havia feito. Ele havia lhe dado apenas uma pequena chance na velha cabana... uma única chance de mudar tudo, de reconstruir, de refazer os estragos que Ivana havia feito. Será que ela teria que ficar cega para conseguir ler as malditas linhas? Pouco tempo, talvez apenas mais alguns segundos e os dedos percorriam o velho livro para achar o que precisava. Apenas breves segundos para pesquisar e conhecer. Ela não queria conhecer a história de todas as dimensões nem a misteriosa história do homem de capuz cego, capaz de contar as mais incríveis histórias. Não! Ela só queria saber como desfazer o maldito feitiço que Ivana havia lançado no mundo por causa... Não! Tinha que se concentrar! Tinha que se concentrar!!!! Não adiantava pensar que Ivana havia trazido o próprio Inferno à Terra por conta de uma disputa por causa... Não! Pense, sua besta quadrúpede! Ele deu apenas uma chance! O pêndulo balançava de um lado para o outro de modo rápido demais. Ele se aproximou atrás dela, apenas esperando que Betânia encontrasse o que precisava. A irmã dela havia abalado uma delicada ordem de vários sistemas dimensionais sem mencionar que o Apocalipse havia chegado mais cedo para a humanidade.
- Meleca catarrenta!!!!
Ele pousou delicadamente a mão sobre o ombro dela.
- Calma! Ainda há tempo...
Não o suficiente! – ela pensou. – Não o suficiente!
Frustrada, Betânia fechou o livro e encarou o homem alto e altivo à sua frente com o capuz sobre o rosto. A voz era gutural como se atravessasse as cavernas esquecidas pelo tempo. Ele se recostou sobre um banco e deixou o capuz cair por sobre o rosto com um sorriso divertido. Betânia teria muito tempo.
- Tente de novo! Vou cochilar.
Como? Cochilar? Certo! Certo! O Imortal já havia feito muito por uma bruxa ordinária como ela. Ela abriu o livro de novo, bufando.
- Vamos! Vamos! Mostre-me o que tenho que fazer. – disse mais para si mesma do que para qualquer outra coisa. Ela estava frustrada e sem que esperasse as páginas do livro foram passando rapidamente trazendo uma brisa morna ao rosto de Betânia. A resposta estava ali, bem à frente dela. Seu rosto se iluminou de esperança enquanto Destino descansava de modo tranqüilo e calmo. As páginas do livro se abriram em duas páginas brancas e Betânia sentiu todas as esperanças partirem do corpo dela pelos pés. A varinha mágica caiu-lhe da mão.
- Eu caminhei meia galáxia para salvar os ordinários humanos porque minha maravilhosa irmã se interessou por alguém e resolveu usar um dos ovos encantados para conquistar alguém que não estava destinado a ela... e, agora, tenho à minha frente duas malditas páginas brancas? Passo pelo inferno dos mais terríveis demônios para isto? Enfrentei toda a sorte de loucuras e desvarios, passei pelos abismos desesperadores para encontrar-me aqui e... e... e... agora... Puta que pariu! – Betânia sentiu o rubor subir à face de sardas. Ela nunca falava palavrões. Nunca!
Destino continuava quieto no canto dele, percebendo as cores à volta da bruxa mudarem de tons confusos de raiva e frustração de novo.
- O que isto quer dizer, bruxa?
Ela se deixou cair, sentando-se encostada no pedestal do maldito livro com lágrimas nos olhos. Teria que significar alguma coisa? Então, seus olhos lilases brilharam na direção dele de uma forma bastante perceptível.
- Nem tudo está no livro Destino? Há coisas que devemos escolher antes de ser escrito. A história é feita a medida que escolhemos e, então, estou aqui para fazer algum tipo de escolha para salvar aqueles a quem devo proteger de qualquer jeito... os humanos... ou parte deles, alguns pedaços de suas almas...
No mesmo instante em que o ímpeto da compreensão a atingiu, ela se deixou cair de novo.
- Mas, agora, que diabos de escolha tenho que fazer?
- Que diabos você quer? Quer trazê-los aqui?
Não! Ela queria era matar a charada e ir embora. O que ela teria que escolher? O quê? Arcângelo era o seu par, eles deveriam ter se unido para uma era de paz como Shiva e Parvarti um dia haviam feito como havia sido escrito no livro de Destino... o Destino havia dito que deveriam ficar juntos e dali surgiria um tempo de luz dourada sobre a humanidade... mas, isso havia sido há muito tempo atrás. A tempestade estava ainda mais forte e poderosa, já estava alcançando a pequena choupana onde se encontravam. Na verdade, Ivana não havia feito o mal agora, mas, antes, muito tempo antes de qualquer coisa... Ela havia amaldiçoado por ciúmes! Aquela era a conseqüência dos atos egoístas... mas, teria que haver alguma luz... uma chama de esperança, muito pequena e era esta chama pequena que Betânia teria que manter viva em algum lugar... do... seu... coração...
- Isto quer dizer que a escolha é... mas... eu... o ... am...
Destino não se mexeu.
- Isto é apenas parte do que acontecerá.
- Então... – as lágrimas a sufocavam. – Ele está livre de tudo... de todos os compromissos espirituais... e eu carregarei a... chama...

A pequena Betânia dormia nas pétalas mágicas de seu mundo quando Morfeu delicadamente retirou uma mecha do rosto da menina que acabava de conhecer o Destino determinado para ela antes mesmo do mundo ter começado.
Destino se aproximou por trás do irmão.
- Ela já sabe?
Morfeu não olhou para trás.
- Já, Irmão. Ela já sabe o que terá que fazer.
Destino sorriu amigavelmente. Tudo estava no lugar como era para ser.

DESESPERO

DESESPERO
Alla andava de um lado ao outro, acendendo cigarros no meio da rua, falando sozinha. A saia mal tinha tempo de acompanhar seus movimentos enquanto falava consigo mesma, gritava consigo mesma, tentando achar uma estranha solução para o que estava prestes a acontecer. Mais uma vez, lembrou-se dos demônios em seu encalço na cozinha de chão preto e branco e lajotas amarelas, quando pegou a faca da cozinha e cortou sua pele, tentando tirar a mancha maldita em seu braço. O sangue escorreu direto para o chão e sujou a faca. As lágrimas permaneceram lá, o sangue saiu com água e sabão. Muito tempo depois, ela descobriu que era assombrada por terríveis demônios. Ela descobriu que nada mais faria sentido em um momento quando se apaixonou por alguém que queria apenas usá-la. Desejou e se desesperou nestes momentos. O que a angustiava profundamente era poder ler a mente e o coração dos outros. Se as vozes pudessem parar de rodar diretamente em sua mente... se ela pudesse deixar este desespero para outros.

Em outro ponto da cidade, Evgeni segurava um baseado no porão do prédio onde trabalhava, sonhando com o dia em que seria alguém rico e famoso. Sonhava com as moças gostosas e caras que iria pegar. Não que ele fosse de se jogar fora. Era alguém jovem, forte, viril e másculo. Ainda tinha a vitalidade juvenil. Até namorara algumas mulheres mais velhas, o que o fazia ficar ainda mais convencido. A única coisa que o incomodava profundamente era que, um dia, sua juventude se partiria como cacos de um espelho. Então, era melhor aproveitar o bom da vida e planejar como ter sua Mercedes aos 40 anos e como brilhar de verdade. As mulheres correriam ainda mais atrás dele, os homens o invejariam porque ele estaria bem de vida. Ele sorriu ao terminar o baseado. Hora de voltar para o gabinete dos engravatados e trabalhar para reunir seus sonhos e ter uma casa cheia de gente bonita e glamourosa e, lógico, a Mercedes.

Grigori estava no ponto de ônibus fumando um cigarro, pensando em um jeito de consertar sua vida que, naquele exato instante, estava uma verdadeira merda. Preso a uma casa, onde era torturado com as regras cretinas do tio com quem era obrigado a morar com um emprego miserável e com sonhos grandiosos. Naquele instante, tudo que ele queria era poder simplesmente ganhar no jogo de xadrez da vida. Queria apenas poder ganhar o suficiente para ajudar os amigos de verdade. Naquela estranha manhã fria, cinzenta e chuvosa, pensou em Evgeni e em um baseado para esquecer aquela merda toda, poder ir trabalhar com tranqüilidade e, por algum tempo, simplesmente esquecer que o mundo era torto e que nem todas as pessoas eram felizes.
Ela riu ao encarar os espelhos que flutuavam à sua volta com as vidas medíocres dos humanos rodiando seu ser grande, pesado, gordo e nu. Sua pele cinzenta exalava sempre um cheiro rançonso e deformado de algo podre. Seu sorriso era um sorriso cruel. Sua quietude incomodava a todos que estavam por perto. Seu anel constantemente rasgava algum lugar de seu corpo. Mas, em seu caso, não havia cicatrizes. Cada marca em seu corpo era o desespero humano com o qual ela se deliciava, do qual se alimentava. Naquele dia em particular, aquelas três almas haviam chamado a atenção. A mulher tinha a alma atormentada por Desejo e pelo Desespero constante de querer ser alguém normal. Evgeni sentia a ânsia desesperadora de alcançar as ilusões do mundo, nada espiritual ou espirituoso, apenas o desespero do materialismo desvairado e descompassado. Grigori queria fugir desesperadamente da sua vida, que não fazia nenhum sentido. Três almas perdidas para seu reino, três seres humanos angustiados com o desespero de seus sentimentos. Uma afogada em pensamentos. Outro nadando em ilusões. Mais um, preocupado em ser feliz. Quão fenomenal era querer ser feliz naquele mundo... Ela sorria malevolamente, deleitando-se com seus alimentos humanos. Outros seres humanos apareciam naqueles espelhos de tantas formas. Se os homens soubessem o que era necessário para a felicidade... Alla já tentara o suicídio uma vez, o desespero supremo de uma alma. Evgeni tivera um trauma na infância ao ver o irmão assassinar outro homem. Grigori se desesperava com o medo que se apossava de sua alma. Dia após dia, sua alma era alimentada por aqueles estranhos desconhecidos, vistos por ela nas tvs de espelho.

Finalmente, no auge do desespero angustiante que tanto derrotava sua alma, Alla pegou seu celular e ligou para Evgeni. Era o único que tinha o telefone que ela precisava. Ela tinha necessidade de conversar com alguém e precisava de Grigori desesperadamente, com o ardor mais profundo de seu ser. AS lágrimas rolavam já há meia hora por seu rosto quando tentou o telefone de Evgeni. Então, foi mais desesperador ainda quando ele a reconheceu e passou o telefone para outra pessoa dizer que era engano. Ela sabia que não era engano. Ela sabia que havia ligado para a única alma que poderia lhe dar o telefone que ela precisava. A dor aumentou e a angústia se rompeu.
- Não! – disse Desespero com certo prazer.
Sonho estava ao lado dela, esperando.
- Irmã, eu lhe devo um favor. Peça-o e eu partirei sem lhe dever mais nada.
- Por que perder tempo com tal humana? Há tantas outras almas... Por quê?
Sonho estava impaciente. Havia outras coisas para se preocupar.
- Ande, Desespero. Não tenho toda a eternidade.
Ela o encarou com seu bafo podre.
- Muito bem! Muito bem! Leve sonho a jovem que assistimos. Faça as esperanças dela subirem, não o suficiente para ela se afastar de mim, está bem?
Ele partiu sem muita satisfação. Não entendia como teria sido enredado no mundo perverso da irmã. Trato era trato. Assim, ele seguiu até Alla, que estava de joelhos, chorando no meio da rua, esperando por algum milagre. A irmã mais velha se aproximou com seu cabelo tão negro quanto o dele, com suas roupas pretas e suas jóias peculiares.
- O que faz aqui?
Ela chupava um pirulito.
- O que acha? Ela ainda está se decidindo.
- Devo um favor a Desespero!
Ela ergueu uma das sobrancelhas.
- Hum.
Então, ele se ajoelhou perto da jovem, que o pegou de surpresa ao encará-lo nos olhos.
- Que tipo de demônio é você?
Então, ele viu às costas dela uma horda de demônios, vários que a perseguiam mas não lhe pertenciam. Ele viu a alma dela rasgada e sangrando em milhares de diferentes pontos. Ele percebeu o quanto Desespero se alimentava daquela pobre e frágil humana à sua frente. Os demônios deveriam ser de outra pessoa.
- O que você quer, afinal? Diga logo... Eles estão esperando ansiosamente.
Então, ele pegou um pouco de pó de sua algibeira e soprou na face dela. Por um momento, ela se deixou cair no concreto, ficando de quatro. Por um momento, ela deixou que mais uma lágrima manchasse o chão cinzento e mais gotas de sangue de sua alma manchassem o lugar. De repente, ela se levantou e suspirou, agarrando o telefone com força. Algo a atingira e ela ligou para alguém, que a acalentou pelo telefone, que lhe trouxe a dose certa de esperança e que disse que iria buscá-la. Ela se sentou agarrando as próprias pernas, balançando seu corpo em agonia, ainda incerta se realmente alguém se importava.
Sonho andava de um lado para o outro, torturado pela estranha imagem da humana e pelos olhos dela terem ido de encontro ao dele. Sim, ele devia um favor a Desespero. Mas, se ajudasse a humana, ele ainda deveria um favor à irmã e não era algo de que ele gostaria. A irmã mais velha, de cabelos pretos e jóias de prata, apareceu e observou.
- Ela carrega os demônios porque quer. Seres humanos são estranhos...
- Mas, eles não são dela!
Ela piscou.
- Não, não são.
- Por que alguém carregaria demônios que não lhe pertencem?
- Por que carregou Imengar?
Ele a encarou de modo estranho. Havia três pessoas nos espelhos. A jovem angustiada, o sonhador arrogante e alguém em busca de um caminho. O buscador estava bastante focado em sair da merda, como ele dizia. Mas, o sonhador arrogante tinha alguma coisa diferente... algo estava faltando pelas escolhas vazias que havia feito... havia... Sim, havia algo que pudesse ser feito e negociar com os Senhores dos Infernos mais uma vez faria com que Desespero saísse de seu encalço e ajudaria a humana com poderes mágicos. Assim, ele seguiu a trilha até o Inferno de Alla. O Senhor do Inferno estava lixando as unhas despreocupadamente. Nem levantou os olhos diante da presença do Senhor dos Sonhos.
- Ser imperfeito, olhe para mim!
Os olhos se arregalaram diante da magnificência e do poder.
- Como devolver os demônios ao verdadeiro dono?
O demônio riu.
- Apenas se ela os expulsar, você sabe. São as regras.
Sonho voltou ao seu reino extremamente frustrado. Por fim, resolveu cumprir sua missão e trouxe sonhos aos desalentados, pesadelos aos desesperados e nenhum sonho aos justos. Então, uma idéia perversa o atingiu: fazer o amigo que a buscara sonhar com as respostas para ela. Assim, ele deu a chave ao homem que deveria ajudá-la a se livrar do que a perturbava. Alla foi internada e foi obrigada a ter esperança para sair do buraco que ela mesma cavara. Muitas vezes, ficou amarrada, vendo os demônios atormentarem sem poder fazer nada... Absolutamente nada! Então, um dia, Guido a visitou e disse que havia muito tempo que sonhava com uma chave que era para dar a ela. Ele explicou que a chave abriria a porta para a liberdade. Então, ao abraçá-la, uma delicada chave de prata pousou nas mãos de Alla e ela sorriu. Havia uma escolha a ser feita e o portão de seu inferno estava prestes a ser aberto. Naquela noite, uma estranha porta se abriu e alguns demônios fugiram e desesperados voltaram ao seu antigo dono.

Evgene passou a ter estranhas alucinações toda vez que usava algum tipo de barato e com o passar dos anos, a Mercedes nunca veio. Ao invés disso, ele se prendeu ao desespero de se tornar alguém e ao desejo do mundo materialista.

Grigori ao saber do estado lamentável da amiga correu em sua ajuda e foi uma importante ferramenta na cura da jovem Alla, então. Os dois permaneceram amigos por toda a vida.

Desespero ameaçou Sonho por ter interferido, mas, sabia que não podia mais brincar com o irmão. O favor havia sido pago.

DELÍRIO

DELÍRIO
Uma pequena moça de cabelos desfiados, curtos e azuis com pares de sapatos diferentes nos pés saía do metrô com descaso total. A meia arrastão e a saia cortada sem muito jeito a faziam parecer uma gótica, perdida em algum mundo de drogas. Seus olhos não paravam em lugar algum, perdidos para quem os olhasse. Ela andava em um ritmo estranho como se suas pernas obedecessem a comandos diferentes. Nada nela atrairia ninguém, ao contrário da irmã andrógina. Não queria. Era melhor assim. Então, ela esbarrou em um homem grande de cabelos vermelhos, que lhe segurou um dos braços.
- Não tão rápido, mocinha!
Ela tentou se debater, mas, era inútil. Ele não a deixaria partir tão cedo. Havia uma profundidade estranha na voz dele.
- Vamos! Está chovendo!
Um vento frio soprou e uma chuva fina começou a cair. No jardim de inverno, ela encontrou o balanço que vinha pendurado de uma árvore apenas para ela. Não pode deixar de sorrir diante do pequeno presente que Destino havia lhe reservado. Lá se sentou e começou a cantarolar coisas sem sentido. Há muito tempo nada fazia sentido em sua mente.
- Eu sei... eu sei... eu sei as coisas... dos homens e dos mortos... eu sei... a verdade ante as mentiras...
O irmão de cabelos vermelhos se aproximou do encapuzado.
- Está na hora, Destino?
O outro a olhou preocupado.
- Levá-la ao lugar de onde fugiu? – ele continuou apreensivo. Havia uma certa fragilidade no modo como ela se comportava: a impulsividade desavisada, o andar desconcertante... Todos estavam ali.
- Um momento. Ainda faltam os outros.
O ruivo torcia as mãos nervosamente enquanto um homem pálido de cabelos negros espetados se aproximou em silêncio.
- Qual de nós a conduzirá? – ele perguntou triunfante já esperando a resposta.
Destino virou-se lentamente.
- Nenhum de nós.
O homem de cabelo preto fez um muxoxo. Desejo chegou ardente em cabelos vermelhos e decotes esverdeados com a atitude costumeira de chamar a atenção. Logo, um cheiro rançoso penetrou no ambiente e nenhuma palavra foi dita com a entrada de Desespero. Todos estavam ansiosos pela chegada da última irmã, que apareceu atrasada com um sorriso.
- Desculpem. Havia umas contas a acertar. Nem sempre os humanos aceitam bem a minha presença. Por que estamos aqui? O que houve, Destino?
Eles ficaram quietos, observando de longe a irmã mais nova, de quem todos gostavam. Apenas ela poderia tê-los juntados daquela maneira. Ela entendeu. Há muito a irmã mais nova era protegida por eles e havia chegado o tempo das perguntas que ela nunca tivera coragem de enfrentar.
- Temos que resgatar uma pessoa do reino dela!
Desejo ainda recordava o último encontro com Destino e amuada se negou a compactuar com tal atitude. Sonho virou a cabeça surpreso para Destino e o Irmão sentiu um certo pesar.
- Quem vamos resgatar?
Destino estava impassível.
- Um mago que se perdeu na loucura.
Todos o encararam aterrorizados. Nunca ninguém havia sido resgatado de seu reino. Sonho apenas ficou imaginando o que o mago teria de tão especial para fazê-los se juntar. Eles eram Eternos e nada poderia atingir-lhes... nem mesmo um reles mago... Merlin? O nome não precisou ser dito mas ressoou na mente de todos eles como um trovão poderoso.
- Achei que ele já tivesse sido cuspido da casa dela... – o Irmão riu.
Não.
- Por quê, Destino? – perguntou Desespero com um interesse lunático.
Ele não respondeu e todos observaram agora a moça de cabelos louros, longos e cacheados de roupas coloridas e desconexas. Ela ainda brincava inocente sem saber o que os irmãos planejavam e eles ousaram planos desafiadores mas nenhum que possibilitasse a retirada de alguém do reino dela. Então, eles ouviram um barulho quase inaudível de asas perto deles. Um anjo de belas asas cinzentas se aproximou deles.
- Posso trazer Prazer de volta por pouco tempo para que resolvam seus assuntos. Não mais do que alguns segundos.
Quando a moça loura encarou as asas acinzentadas, ela parou de balançar e começou a chorar. Ele passou a mão pelo rosto dela com delicadeza.
- Não chore, criança. A dor vai ser passageira. É...
Ela sabia. Precisava libertar alguém... alguém que ela havia esquecido há muito tempo em seu reino como uma punição e o anjo libertador lhe dizia que a hora havia chegado. Ele lhe deu algo que ela tomou e todos ficaram observando a mudança que aconteceu a irmã mais nova: os cabelos se tornaram cor de fogo, os olhos adquiriram um tom azul esverdeado e, finalmente, suas roupas estavam em perfeita ordem. Ela sorriu para eles um esgar profundo.
- O que querem? – ela soou grave.
- Merlin. – disse Destino.
Ela o encarou com fúria.
- Ele roubou todo o conhecimento de mim, tentou me matar e drenar... não acha que ele deveria ficar preso por toda eternidade com a gente? Ele retirou parte da minha alegria.
O ruivo estava para bater em Destino quando o irmão mais velho o impediu apenas com um gesto de mão.
- Eu sei disso! No entanto, para que o final dos tempos chegue, cada coisa tem que estar em seu lugar. Merlin não devia estar aqui, ele pertence a outro tempo...
Ela fez uma careta de dor profunda.
- Não! É a minha decisão final!
Novamente, a irmã começou a se balançar divertida como se nada tivesse havido, suas roupas voltaram a ficar assimétricas.
- Merlin, o louco... merlin, você não sabe de nada!!!
Destino fechou seu livro e os outros o observaram.
- E agora? – disse Sonho. – Você nos trouxe aqui apenas para presenciar isto? Ela volta radiante e parte, de novo, para a loucura. O que você pretendia? – ele desafiou.
Destino apenas cumpria as ordens escritas para ele no velho livro. Enquanto Merlin estivesse preso no reino de Delírio nada poderia ser feito. Uma parada na história da humanidade, um terrível momento... Então, um homem de capa negra surgiu por trás deles e, displicentemente, acendeu um cigarro. Desejo sentiu um súbito arrepio e fingiu um amuar de dar pena.
- Eu posso entrar nos reinos de Delírio.
Destino consentiu enquanto os outros observavam atônitos o penetra caminhar até Delírio, segurá-la pela mão e levá-la para passear.

Enquanto caminhavam de mãos dadas, o homem se transformou em uma dama saída diretamente das lendas gregas e Delírio a observava sem entender muito bem porque se sentia tão bem ao lado daquela moça que antes era um homem.
- Os caminhos que levam até você passam por mim antes. Eu sou os caminhos que levam os homens até o seu reino. Sou até mesmo o caminho que você ainda trilha na tentativa de se encontrar.
Ela encarou a bela jovem grega de uma forma diferente e riu histericamente.
- Ninguém sai do meu reino! Ninguém!
Seria uma ameaça? A moça sorriu. Não havia modo algum dela se perder. Afinal, todos os caminhos passavam por ela e ela conhecia os caminhos do reino de Delírio. Ela teve um pequeno lampejo do que Delírio era e, assim, segurando a mão de Delírio com delicadeza disse:
- Parte do que você procura está no coração de Merlin.
Delírio a encarou.
- Nada procuro. Nada sei. Sou inocente.
A moça continuou segurando sua mão até que se depararam com um velho preso a uma parede de um castelo medieval. Lá estava o velho mago, ainda respirando com olhos tresloucados. No entanto, havia uma poeira de algo em seus olhos que até mesmo para Delírio houve um momento de parar o coração.
Ela se virou abruptamente, tentando achar o caminho em seu reino e percebeu que se perdera. Com raiva, atacou a jovem bonita, tirando-lhe sangue com suas unhas. A jovem caiu sem forças, sangrando por todo o corpo e não derramou lágrima alguma. Merlin observou a intrincante cena.
- Eu não sou Merlin, o poderoso mago. – disse com humildade. – Sou apenas um homem que carrega o título de Merlin. Usurpei o título para minha pessoa e tentei tirar algo de você. Arranque meu coração e você o terá de volta.
As mulheres o olharam. Uma agradecida, a outra perdida, tentando decidir o que fazer. Então, decidiu por um punhal e abriu o corpo velho e decrépito de cima abaixo e, dentro do coração do homem, havia um diamante vivo e brilhante, uma pedra que não ardia nem machucava. Delírio observou e pegou a pedra, sentindo parte de sua alma retornar. Ainda assim, havia muitos outros pedaços a serem juntados. A moça grega desapareceu e, logo, ela estava de volta ao balanço de cabelos pretos com pontas brancas, um olho verde esmeralda, o outro azul violeta.
O homem de casaco negro saiu de perto dela e se encaminhou para os Perpétuos.
- Aquele que se dizia Merlin está livre agora!
Destino tocou-lhe o braço.
- Obrigado!
- Não, não agradeça. Ela ainda está doente.
Ele partiu sem deixar vestígios e os irmãos se afastaram, uma vez que se ficassem juntos por tempo demais causariam um mal desnecessário a humanidade.

DESTRUIÇÃO

DESTRUIÇÃO
Ele estava sentado em um café nas ruas de Paris. Ninguém ousava se aproximar dele, pois, suas feições ferinas e ameaçadoras espantavam qualquer um que estivesse disposto a se manter em paz. Mesmo por detrás de seus óculos escuros, ele era temerário. Poder-se-ia dizer a seu respeito que estivera entre os legionários franceses ou que, talvez, fosse um fantasma da Idade Média, uma vez que ele parecia ter a fúria cega que movia os antigos cavaleiros. Ele estava sentado, esperando por nada, apenas apreciando mais um belo dia na Terra, um dia ordinário na vida dos homens quando um homem pálido de cabelos negros e sobretudo do mesmo negro profundo se sentou à sua frente. Ele sorria enquanto comia uma azeitona. O homem sentado antes no café resmungou algo que nenhum outro ser poderia entender.
- Ora, tenha bom senso! Sou eu que levo esperança aos destroçados por você, caríssimo irmão.
O homem ruivo ergueu a cabeça.
- Não posso evitar minha natureza. No entanto, tenho tentado remeter meu karma ao meu futuro.
O homem de preto continuou sorrindo.
- Karma? Por onde andou todo este tempo? Com monges tibetanos insossos? Foi exatamente quando lançou a tsunami?
O ruivo apenas lançou um olhar profundo.
- Havia povos com sede.
- Acho que você errou o continente.
O homem mais velho estava para pular da cadeira e arrancar a cabeça do homem de preto.
- Fale logo o que quer, Dream Walker!
- Aqui, não gostam muito de expressões em inglês. Mas, já que você perguntou o que eu quero... hummm... saber quais são seus planos para que eu possa agir logo em seguida. Você sabe, as pessoas precisam ter sonhos, Irmão.
O irmão mais novo sabia como irritá-lo e como deixá-lo mais calmo. Talvez, o irmão que menos fosse desvairado junto com a dos cabelos pretos. Ele era o único que parecia saber sempre seu paradeiro.
- Estou de férias.
- Gostei da obra nos Estados Unidos e no metrô de Londres.
O grande homem se sentiu derrotado. Haveria algum sonho para si próprio? Por que o Destino lhe dera a missão de simplesmente arrasar e devastar? Era capaz de criar desenhos intricados, máquinas engenhosas, mas, qualquer que fosse sua criação ela destruía e extinguia seres humanos por mais desagradável que lhe parecesse tal obrigação.
- Fale logo, o que diabos você quer?
- Cumpra o seu Destino. Não quero que volte a reinar. Mas, entenda, há mudanças e estas mudanças dependem de você, se é que entende. Não posso amortecê-los por toda a eternidade, Irmão.
Ele entendia por mais que quisesse brincar que não.
- O que tenho que fazer?
- Ué, o que você sempre faz.
Ele respirou fundo e olhou para o céu azul, para a torre Eiffell atrás deles e se lembrou de quão belo o mundo era mesmo com seres imperfeitos e criaturas eternas estúpidas como seu irmão.
- Destruir tudo?
O irmão sorriu. A hora havia chegado.

O deserto o fazia suar e seus cabelos vermelhos adquiriam um tom ainda mais forte de fogo com o sol escaldante. Algumas mulheres o encararam com uma profundidade triste por baixo de seus mantos. Eram olhos fortes de mulheres guerreiras da vida. Ali, haveria um teste único, um teste para o qual ele não fora convidado, mas, era presença obrigatória. Ele encarou o deserto à sua frente e se encaminhou para ele. Para as pessoas, era mais um ocidental maluco. A Morte o encarou. Era o fim de uma era, de um povo e, talvez, da humanidade. Ela colocou a mão no ombro do Irmão com seu turbante negro e pele pálida.
- Talvez, um dia, certo?
- É, talvez.
Ele prosseguiu e um teste de uma bomba atômica que deveria permanecer em segredo saiu errado e todo o Oriente Médio deixou de existir do dia para a noite. Rápido. Silenciosamente. Milhões atacados pela peste, fome e desespero. Ele não estava orgulhoso de seu trabalho. Hospitais no Ocidente abarrotados de gente atacada pelos raios da bomba atômica. O mundo estava em estado de alerta e todos olhavam chocados o teste de uma bomba atômica que quase acabara com o mundo. Ele observava a notícia de uma tv precária em algum lugar da América do Sul. As notícias só chegavam até seus ouvidos por causa dos habitantes. Uma geração de crianças dilaceradas nasceriam dos contaminados, um continente se desfizera e o mundo deveria rever seu modo de encarar a vida. Um homem com um capuz se aproximou do ruivo enquanto ele capinava e capinava e capinava. Ele parou e observou.
- Será que já não fiz o bastante?
O encapuzado continuou quieto.
- Poderia ter dado um fim até em nós mesmos?
O outro o encarou calmamente.
- Este é o seu Destino. Destruir para que a vida continue. Perceba, você está capinando. Destruindo para que a vida seja renovada na Terra. Enquanto não entender esta necessidade...
Ele continuou.
- As almas devem partir, Irmão. Este mundo está mudando e nós mudaremos com ele. Talvez, assim, você possa ser útil de uma outra maneira...
Finalmente, os olhos do ruivo encararam o homem cego à sua frente. Até ele, tinha seus sonhos secretos.

DESEJO

DESEJO

Eu sou tudo que os seres humanos desejam em suas sórdidas mentes. Sou tudo que querem. Lamento que meu irmão não me deixe penetrar em seu reino para manipular ainda mais suas mentes cheias apenas de mim. Posso ser quem eu quiser, tornar-me qualquer um de acordo com os desejos alheios. As crianças são divertidas, pois, ainda sonham com fadas e algumas outras criaturas nem tão inocentes. Lamento por aqueles que não tem uma vida fácil e onde os reinos do meu irmão mais velho não se valem. Sonho não pertence a estas crianças, mas, eu estou perto delas quando vêem uma vitrine com brinquedos que não podem ter. O que há de mal se roubam para conseguir o que querem? Eu apenas cumpro meu Destino... apenas sigo as rodas de minha própria fortuna até que Destino resolva o que fazer comigo. Tem pessoas que desejam tão arduamente que conseguem viver integramente e isto me faz perscrutar suas mentes em busca de uma resposta porque estou em todos os lugares, em todas as mentes, em todas as almas. Sem mim, a humanidade estaria nas cavernas, estaria ainda desejando ser as estrelas do céu.
A humanidade decepciona os Superiores. Não a mim. É mais fácil entrar em seus seres, em suas células. Eles não me temem mais... sou a droga que consomem, as jóias das mulheres ricas, os vestidos, todo o desejo humano está condicionado a mim. Isto não é interessante? Entro em suas festas por ser quem desejam e, logo, faço-os desejar homens ou mulheres, trancafio-os dentro de si próprios com seus desejos. Conheço poucos homens capazes de resistir a mim, o homem conhecido como Cristo foi um deles. Os grandes monges do Tibet... Bom, agora, é hora de brincar com as mentes humanas. Estou em uma boate e sou uma mulher magra, do tipo que os homens desejam e que as mulheres gostariam de ser. Meus ossos estão à mostra como é a moda atual. Uso uma roupa colante e mostro partes da pele imortal que tenho. Os homens me admiram porque transmito glamour e as mulheres me invejam e todos me desejam. Está na hora de enfeitiçar a todos. Entre os meus risos e as pessoas cheirando pó de modo que nunca se satisfarão, sinto seus olhos às minhas costas. Ele veste um casaco negro e me olha de modo impenetrável com a profunda mágoa que sempre carrega desde que seguimos diferentes rumos.
Se sinto falta da essência mágica que exala? Não posso imaginar ninguém mais perfeito ou melhor para mim, mas, sou escravo de meu próprio nome e, diante dos meus desejos, segui em frente em uma busca frenética por emoções, pessoas e persuasão. Segui minha natureza. Mas, estes olhos em minha nuca me fazem arrepiar de modo inacreditável e Morfeu deve sentir algum prazer em me ver miserável, caindo em uma armadilha tão tola. Deve haver alguma razão para que este ser tenha se aproximado sem cautela alguma. Afinal, foi ao inferno por mim e tentou de tudo... Eu me aproximo dele e ele está diferente, tão diferente de quando nos unimos. Os olhos ainda trazem alguma doçura. Enfim...
- Olá! – digo.
- Olá! – ele diz de modo seco.
Eu sorrio para a multidão e me alimento dos corpos ardentes.
- O que você quer?
Ele me encara sem surpresa nos profundos olhos e permanece em silêncio.
- Fui enviado até você.
Eu me surpreendo e escondo os sentimentos de confusão. Morfeu deve estar por aqui em algum lugar. Tento parecer naturalmente charmosa. Afinal, sou Desejo.
- Ora, para quê?
Eu sabia que fazia parte da penitência que passava em nome do amor que jamais se desmancharia em sua alma.
- O que Eles querem?
Ele riu ao engolir o uísque.
- É Destino que lhe chama.
Destino?! O que haveria de tão importante que seria necessário a interferência de Destino?
- O que ele deseja?
- Ora, sou o mensageiro. Apenas vim lhe dizer para ir até ele.
Devia ser alguma encrenca das grandes!

Na verdade, saí da boate em atordoamento e lá estava meu irmão mais velho, esperando-me com algum tipo de manto moderno. Segurei em seu braço, fingindo ser algum tipo de bondosa alma guiando um pobre homem cego pelas ruas de uma cidade grande, suja e cheia de desejos tanto puros quanto sanguinolentos. Algo muito sério deve ter acontecido e eu fingia completo descaso, mas, minha curiosidade rumina a todo instante.
Ele pigarreou. Isso não era nada bom.
- Você não brincou o suficiente já? Os homens precisam de descanso.
Havia um tom sombrio naquela voz.
- O que quer dizer, Destino? Eu posso tudo... Afinal, sou Desejo.
Quieto e sério como sempre. Como uma sombra azarando, ele vinha nos seguindo.
- O que ele faz nos seguindo?
O primeiro sorriso que vi Destino lançar e isso me assustou.
- Ele cuida de mim.
- Você precisa cumprir seu papel a risca. Você perdeu o direito ao amor, Destino. Mas, pare de brincar.
Eu ri.
- Ou?
Ele guiava as almas das pessoas fiando suas vidas e ele permaneceu em silêncio.
- Há um fim para tudo, Desejo e as contas pesam na balança neste fim, mesmo para nós, os Perpétuos.
O silêncio se adensou.
- O que você quer dizer com perder o direito ao amor?
Ele sorriu como um irmão mais velho faria com uma certa pena.
- Você perdeu sua Alma. Agora, ele está livre, Desejo.
Um raio me atingiu e olhei para trás em um reflexo e o homem meneou a cabeça com um leve sorriso vitorioso. Ele havia conseguido me superar e isso me devastou. Destino apenas apertou com um pouco mais de força meu braço e disse:
- Vá e cumpra seu Destino!