quarta-feira, novembro 08, 2006

DESESPERO

DESESPERO
Alla andava de um lado ao outro, acendendo cigarros no meio da rua, falando sozinha. A saia mal tinha tempo de acompanhar seus movimentos enquanto falava consigo mesma, gritava consigo mesma, tentando achar uma estranha solução para o que estava prestes a acontecer. Mais uma vez, lembrou-se dos demônios em seu encalço na cozinha de chão preto e branco e lajotas amarelas, quando pegou a faca da cozinha e cortou sua pele, tentando tirar a mancha maldita em seu braço. O sangue escorreu direto para o chão e sujou a faca. As lágrimas permaneceram lá, o sangue saiu com água e sabão. Muito tempo depois, ela descobriu que era assombrada por terríveis demônios. Ela descobriu que nada mais faria sentido em um momento quando se apaixonou por alguém que queria apenas usá-la. Desejou e se desesperou nestes momentos. O que a angustiava profundamente era poder ler a mente e o coração dos outros. Se as vozes pudessem parar de rodar diretamente em sua mente... se ela pudesse deixar este desespero para outros.

Em outro ponto da cidade, Evgeni segurava um baseado no porão do prédio onde trabalhava, sonhando com o dia em que seria alguém rico e famoso. Sonhava com as moças gostosas e caras que iria pegar. Não que ele fosse de se jogar fora. Era alguém jovem, forte, viril e másculo. Ainda tinha a vitalidade juvenil. Até namorara algumas mulheres mais velhas, o que o fazia ficar ainda mais convencido. A única coisa que o incomodava profundamente era que, um dia, sua juventude se partiria como cacos de um espelho. Então, era melhor aproveitar o bom da vida e planejar como ter sua Mercedes aos 40 anos e como brilhar de verdade. As mulheres correriam ainda mais atrás dele, os homens o invejariam porque ele estaria bem de vida. Ele sorriu ao terminar o baseado. Hora de voltar para o gabinete dos engravatados e trabalhar para reunir seus sonhos e ter uma casa cheia de gente bonita e glamourosa e, lógico, a Mercedes.

Grigori estava no ponto de ônibus fumando um cigarro, pensando em um jeito de consertar sua vida que, naquele exato instante, estava uma verdadeira merda. Preso a uma casa, onde era torturado com as regras cretinas do tio com quem era obrigado a morar com um emprego miserável e com sonhos grandiosos. Naquele instante, tudo que ele queria era poder simplesmente ganhar no jogo de xadrez da vida. Queria apenas poder ganhar o suficiente para ajudar os amigos de verdade. Naquela estranha manhã fria, cinzenta e chuvosa, pensou em Evgeni e em um baseado para esquecer aquela merda toda, poder ir trabalhar com tranqüilidade e, por algum tempo, simplesmente esquecer que o mundo era torto e que nem todas as pessoas eram felizes.
Ela riu ao encarar os espelhos que flutuavam à sua volta com as vidas medíocres dos humanos rodiando seu ser grande, pesado, gordo e nu. Sua pele cinzenta exalava sempre um cheiro rançonso e deformado de algo podre. Seu sorriso era um sorriso cruel. Sua quietude incomodava a todos que estavam por perto. Seu anel constantemente rasgava algum lugar de seu corpo. Mas, em seu caso, não havia cicatrizes. Cada marca em seu corpo era o desespero humano com o qual ela se deliciava, do qual se alimentava. Naquele dia em particular, aquelas três almas haviam chamado a atenção. A mulher tinha a alma atormentada por Desejo e pelo Desespero constante de querer ser alguém normal. Evgeni sentia a ânsia desesperadora de alcançar as ilusões do mundo, nada espiritual ou espirituoso, apenas o desespero do materialismo desvairado e descompassado. Grigori queria fugir desesperadamente da sua vida, que não fazia nenhum sentido. Três almas perdidas para seu reino, três seres humanos angustiados com o desespero de seus sentimentos. Uma afogada em pensamentos. Outro nadando em ilusões. Mais um, preocupado em ser feliz. Quão fenomenal era querer ser feliz naquele mundo... Ela sorria malevolamente, deleitando-se com seus alimentos humanos. Outros seres humanos apareciam naqueles espelhos de tantas formas. Se os homens soubessem o que era necessário para a felicidade... Alla já tentara o suicídio uma vez, o desespero supremo de uma alma. Evgeni tivera um trauma na infância ao ver o irmão assassinar outro homem. Grigori se desesperava com o medo que se apossava de sua alma. Dia após dia, sua alma era alimentada por aqueles estranhos desconhecidos, vistos por ela nas tvs de espelho.

Finalmente, no auge do desespero angustiante que tanto derrotava sua alma, Alla pegou seu celular e ligou para Evgeni. Era o único que tinha o telefone que ela precisava. Ela tinha necessidade de conversar com alguém e precisava de Grigori desesperadamente, com o ardor mais profundo de seu ser. AS lágrimas rolavam já há meia hora por seu rosto quando tentou o telefone de Evgeni. Então, foi mais desesperador ainda quando ele a reconheceu e passou o telefone para outra pessoa dizer que era engano. Ela sabia que não era engano. Ela sabia que havia ligado para a única alma que poderia lhe dar o telefone que ela precisava. A dor aumentou e a angústia se rompeu.
- Não! – disse Desespero com certo prazer.
Sonho estava ao lado dela, esperando.
- Irmã, eu lhe devo um favor. Peça-o e eu partirei sem lhe dever mais nada.
- Por que perder tempo com tal humana? Há tantas outras almas... Por quê?
Sonho estava impaciente. Havia outras coisas para se preocupar.
- Ande, Desespero. Não tenho toda a eternidade.
Ela o encarou com seu bafo podre.
- Muito bem! Muito bem! Leve sonho a jovem que assistimos. Faça as esperanças dela subirem, não o suficiente para ela se afastar de mim, está bem?
Ele partiu sem muita satisfação. Não entendia como teria sido enredado no mundo perverso da irmã. Trato era trato. Assim, ele seguiu até Alla, que estava de joelhos, chorando no meio da rua, esperando por algum milagre. A irmã mais velha se aproximou com seu cabelo tão negro quanto o dele, com suas roupas pretas e suas jóias peculiares.
- O que faz aqui?
Ela chupava um pirulito.
- O que acha? Ela ainda está se decidindo.
- Devo um favor a Desespero!
Ela ergueu uma das sobrancelhas.
- Hum.
Então, ele se ajoelhou perto da jovem, que o pegou de surpresa ao encará-lo nos olhos.
- Que tipo de demônio é você?
Então, ele viu às costas dela uma horda de demônios, vários que a perseguiam mas não lhe pertenciam. Ele viu a alma dela rasgada e sangrando em milhares de diferentes pontos. Ele percebeu o quanto Desespero se alimentava daquela pobre e frágil humana à sua frente. Os demônios deveriam ser de outra pessoa.
- O que você quer, afinal? Diga logo... Eles estão esperando ansiosamente.
Então, ele pegou um pouco de pó de sua algibeira e soprou na face dela. Por um momento, ela se deixou cair no concreto, ficando de quatro. Por um momento, ela deixou que mais uma lágrima manchasse o chão cinzento e mais gotas de sangue de sua alma manchassem o lugar. De repente, ela se levantou e suspirou, agarrando o telefone com força. Algo a atingira e ela ligou para alguém, que a acalentou pelo telefone, que lhe trouxe a dose certa de esperança e que disse que iria buscá-la. Ela se sentou agarrando as próprias pernas, balançando seu corpo em agonia, ainda incerta se realmente alguém se importava.
Sonho andava de um lado para o outro, torturado pela estranha imagem da humana e pelos olhos dela terem ido de encontro ao dele. Sim, ele devia um favor a Desespero. Mas, se ajudasse a humana, ele ainda deveria um favor à irmã e não era algo de que ele gostaria. A irmã mais velha, de cabelos pretos e jóias de prata, apareceu e observou.
- Ela carrega os demônios porque quer. Seres humanos são estranhos...
- Mas, eles não são dela!
Ela piscou.
- Não, não são.
- Por que alguém carregaria demônios que não lhe pertencem?
- Por que carregou Imengar?
Ele a encarou de modo estranho. Havia três pessoas nos espelhos. A jovem angustiada, o sonhador arrogante e alguém em busca de um caminho. O buscador estava bastante focado em sair da merda, como ele dizia. Mas, o sonhador arrogante tinha alguma coisa diferente... algo estava faltando pelas escolhas vazias que havia feito... havia... Sim, havia algo que pudesse ser feito e negociar com os Senhores dos Infernos mais uma vez faria com que Desespero saísse de seu encalço e ajudaria a humana com poderes mágicos. Assim, ele seguiu a trilha até o Inferno de Alla. O Senhor do Inferno estava lixando as unhas despreocupadamente. Nem levantou os olhos diante da presença do Senhor dos Sonhos.
- Ser imperfeito, olhe para mim!
Os olhos se arregalaram diante da magnificência e do poder.
- Como devolver os demônios ao verdadeiro dono?
O demônio riu.
- Apenas se ela os expulsar, você sabe. São as regras.
Sonho voltou ao seu reino extremamente frustrado. Por fim, resolveu cumprir sua missão e trouxe sonhos aos desalentados, pesadelos aos desesperados e nenhum sonho aos justos. Então, uma idéia perversa o atingiu: fazer o amigo que a buscara sonhar com as respostas para ela. Assim, ele deu a chave ao homem que deveria ajudá-la a se livrar do que a perturbava. Alla foi internada e foi obrigada a ter esperança para sair do buraco que ela mesma cavara. Muitas vezes, ficou amarrada, vendo os demônios atormentarem sem poder fazer nada... Absolutamente nada! Então, um dia, Guido a visitou e disse que havia muito tempo que sonhava com uma chave que era para dar a ela. Ele explicou que a chave abriria a porta para a liberdade. Então, ao abraçá-la, uma delicada chave de prata pousou nas mãos de Alla e ela sorriu. Havia uma escolha a ser feita e o portão de seu inferno estava prestes a ser aberto. Naquela noite, uma estranha porta se abriu e alguns demônios fugiram e desesperados voltaram ao seu antigo dono.

Evgene passou a ter estranhas alucinações toda vez que usava algum tipo de barato e com o passar dos anos, a Mercedes nunca veio. Ao invés disso, ele se prendeu ao desespero de se tornar alguém e ao desejo do mundo materialista.

Grigori ao saber do estado lamentável da amiga correu em sua ajuda e foi uma importante ferramenta na cura da jovem Alla, então. Os dois permaneceram amigos por toda a vida.

Desespero ameaçou Sonho por ter interferido, mas, sabia que não podia mais brincar com o irmão. O favor havia sido pago.

Nenhum comentário: