quarta-feira, novembro 08, 2006

DELÍRIO

DELÍRIO
Uma pequena moça de cabelos desfiados, curtos e azuis com pares de sapatos diferentes nos pés saía do metrô com descaso total. A meia arrastão e a saia cortada sem muito jeito a faziam parecer uma gótica, perdida em algum mundo de drogas. Seus olhos não paravam em lugar algum, perdidos para quem os olhasse. Ela andava em um ritmo estranho como se suas pernas obedecessem a comandos diferentes. Nada nela atrairia ninguém, ao contrário da irmã andrógina. Não queria. Era melhor assim. Então, ela esbarrou em um homem grande de cabelos vermelhos, que lhe segurou um dos braços.
- Não tão rápido, mocinha!
Ela tentou se debater, mas, era inútil. Ele não a deixaria partir tão cedo. Havia uma profundidade estranha na voz dele.
- Vamos! Está chovendo!
Um vento frio soprou e uma chuva fina começou a cair. No jardim de inverno, ela encontrou o balanço que vinha pendurado de uma árvore apenas para ela. Não pode deixar de sorrir diante do pequeno presente que Destino havia lhe reservado. Lá se sentou e começou a cantarolar coisas sem sentido. Há muito tempo nada fazia sentido em sua mente.
- Eu sei... eu sei... eu sei as coisas... dos homens e dos mortos... eu sei... a verdade ante as mentiras...
O irmão de cabelos vermelhos se aproximou do encapuzado.
- Está na hora, Destino?
O outro a olhou preocupado.
- Levá-la ao lugar de onde fugiu? – ele continuou apreensivo. Havia uma certa fragilidade no modo como ela se comportava: a impulsividade desavisada, o andar desconcertante... Todos estavam ali.
- Um momento. Ainda faltam os outros.
O ruivo torcia as mãos nervosamente enquanto um homem pálido de cabelos negros espetados se aproximou em silêncio.
- Qual de nós a conduzirá? – ele perguntou triunfante já esperando a resposta.
Destino virou-se lentamente.
- Nenhum de nós.
O homem de cabelo preto fez um muxoxo. Desejo chegou ardente em cabelos vermelhos e decotes esverdeados com a atitude costumeira de chamar a atenção. Logo, um cheiro rançoso penetrou no ambiente e nenhuma palavra foi dita com a entrada de Desespero. Todos estavam ansiosos pela chegada da última irmã, que apareceu atrasada com um sorriso.
- Desculpem. Havia umas contas a acertar. Nem sempre os humanos aceitam bem a minha presença. Por que estamos aqui? O que houve, Destino?
Eles ficaram quietos, observando de longe a irmã mais nova, de quem todos gostavam. Apenas ela poderia tê-los juntados daquela maneira. Ela entendeu. Há muito a irmã mais nova era protegida por eles e havia chegado o tempo das perguntas que ela nunca tivera coragem de enfrentar.
- Temos que resgatar uma pessoa do reino dela!
Desejo ainda recordava o último encontro com Destino e amuada se negou a compactuar com tal atitude. Sonho virou a cabeça surpreso para Destino e o Irmão sentiu um certo pesar.
- Quem vamos resgatar?
Destino estava impassível.
- Um mago que se perdeu na loucura.
Todos o encararam aterrorizados. Nunca ninguém havia sido resgatado de seu reino. Sonho apenas ficou imaginando o que o mago teria de tão especial para fazê-los se juntar. Eles eram Eternos e nada poderia atingir-lhes... nem mesmo um reles mago... Merlin? O nome não precisou ser dito mas ressoou na mente de todos eles como um trovão poderoso.
- Achei que ele já tivesse sido cuspido da casa dela... – o Irmão riu.
Não.
- Por quê, Destino? – perguntou Desespero com um interesse lunático.
Ele não respondeu e todos observaram agora a moça de cabelos louros, longos e cacheados de roupas coloridas e desconexas. Ela ainda brincava inocente sem saber o que os irmãos planejavam e eles ousaram planos desafiadores mas nenhum que possibilitasse a retirada de alguém do reino dela. Então, eles ouviram um barulho quase inaudível de asas perto deles. Um anjo de belas asas cinzentas se aproximou deles.
- Posso trazer Prazer de volta por pouco tempo para que resolvam seus assuntos. Não mais do que alguns segundos.
Quando a moça loura encarou as asas acinzentadas, ela parou de balançar e começou a chorar. Ele passou a mão pelo rosto dela com delicadeza.
- Não chore, criança. A dor vai ser passageira. É...
Ela sabia. Precisava libertar alguém... alguém que ela havia esquecido há muito tempo em seu reino como uma punição e o anjo libertador lhe dizia que a hora havia chegado. Ele lhe deu algo que ela tomou e todos ficaram observando a mudança que aconteceu a irmã mais nova: os cabelos se tornaram cor de fogo, os olhos adquiriram um tom azul esverdeado e, finalmente, suas roupas estavam em perfeita ordem. Ela sorriu para eles um esgar profundo.
- O que querem? – ela soou grave.
- Merlin. – disse Destino.
Ela o encarou com fúria.
- Ele roubou todo o conhecimento de mim, tentou me matar e drenar... não acha que ele deveria ficar preso por toda eternidade com a gente? Ele retirou parte da minha alegria.
O ruivo estava para bater em Destino quando o irmão mais velho o impediu apenas com um gesto de mão.
- Eu sei disso! No entanto, para que o final dos tempos chegue, cada coisa tem que estar em seu lugar. Merlin não devia estar aqui, ele pertence a outro tempo...
Ela fez uma careta de dor profunda.
- Não! É a minha decisão final!
Novamente, a irmã começou a se balançar divertida como se nada tivesse havido, suas roupas voltaram a ficar assimétricas.
- Merlin, o louco... merlin, você não sabe de nada!!!
Destino fechou seu livro e os outros o observaram.
- E agora? – disse Sonho. – Você nos trouxe aqui apenas para presenciar isto? Ela volta radiante e parte, de novo, para a loucura. O que você pretendia? – ele desafiou.
Destino apenas cumpria as ordens escritas para ele no velho livro. Enquanto Merlin estivesse preso no reino de Delírio nada poderia ser feito. Uma parada na história da humanidade, um terrível momento... Então, um homem de capa negra surgiu por trás deles e, displicentemente, acendeu um cigarro. Desejo sentiu um súbito arrepio e fingiu um amuar de dar pena.
- Eu posso entrar nos reinos de Delírio.
Destino consentiu enquanto os outros observavam atônitos o penetra caminhar até Delírio, segurá-la pela mão e levá-la para passear.

Enquanto caminhavam de mãos dadas, o homem se transformou em uma dama saída diretamente das lendas gregas e Delírio a observava sem entender muito bem porque se sentia tão bem ao lado daquela moça que antes era um homem.
- Os caminhos que levam até você passam por mim antes. Eu sou os caminhos que levam os homens até o seu reino. Sou até mesmo o caminho que você ainda trilha na tentativa de se encontrar.
Ela encarou a bela jovem grega de uma forma diferente e riu histericamente.
- Ninguém sai do meu reino! Ninguém!
Seria uma ameaça? A moça sorriu. Não havia modo algum dela se perder. Afinal, todos os caminhos passavam por ela e ela conhecia os caminhos do reino de Delírio. Ela teve um pequeno lampejo do que Delírio era e, assim, segurando a mão de Delírio com delicadeza disse:
- Parte do que você procura está no coração de Merlin.
Delírio a encarou.
- Nada procuro. Nada sei. Sou inocente.
A moça continuou segurando sua mão até que se depararam com um velho preso a uma parede de um castelo medieval. Lá estava o velho mago, ainda respirando com olhos tresloucados. No entanto, havia uma poeira de algo em seus olhos que até mesmo para Delírio houve um momento de parar o coração.
Ela se virou abruptamente, tentando achar o caminho em seu reino e percebeu que se perdera. Com raiva, atacou a jovem bonita, tirando-lhe sangue com suas unhas. A jovem caiu sem forças, sangrando por todo o corpo e não derramou lágrima alguma. Merlin observou a intrincante cena.
- Eu não sou Merlin, o poderoso mago. – disse com humildade. – Sou apenas um homem que carrega o título de Merlin. Usurpei o título para minha pessoa e tentei tirar algo de você. Arranque meu coração e você o terá de volta.
As mulheres o olharam. Uma agradecida, a outra perdida, tentando decidir o que fazer. Então, decidiu por um punhal e abriu o corpo velho e decrépito de cima abaixo e, dentro do coração do homem, havia um diamante vivo e brilhante, uma pedra que não ardia nem machucava. Delírio observou e pegou a pedra, sentindo parte de sua alma retornar. Ainda assim, havia muitos outros pedaços a serem juntados. A moça grega desapareceu e, logo, ela estava de volta ao balanço de cabelos pretos com pontas brancas, um olho verde esmeralda, o outro azul violeta.
O homem de casaco negro saiu de perto dela e se encaminhou para os Perpétuos.
- Aquele que se dizia Merlin está livre agora!
Destino tocou-lhe o braço.
- Obrigado!
- Não, não agradeça. Ela ainda está doente.
Ele partiu sem deixar vestígios e os irmãos se afastaram, uma vez que se ficassem juntos por tempo demais causariam um mal desnecessário a humanidade.

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