quarta-feira, novembro 08, 2006

SONHO

SONHO
Ele andava no escuro. A única coisa que tinha cores eram as imagens produzidas enquanto ele caminhava. Um túnel com milhares de imagens, encontros estranhos e desejos extraídos das sombras das mentes humanas. No entanto, ele estava preocupado com algo que não ia bem. Seu mundo estava em ordem, os sonhos eram tecidos como as teias das aranhas. Cada um trazia dentro de si uma vontade interna que se realizaria ou não. Então, a irmã mais velha surgiu no meio do nada e isso o fez ficar ainda mais preocupado.
- O que houve?
- Senti que algo estava estranho e...
Ele a encarou sério.
- Você não viria aqui só porque sentiu que um dos irmãos não está bem.
Ela deu de ombros.
- É verdade. Na verdade, eu estava curiosa... por que ajudou o mago? Você não é exatamente o tipo romântico. Está mais para o tipo amante vingativo: amem-me ou eu destruo.
Ele lançou um olhar duro para ela. Ela ultrapassava limites e barreiras perigosos, mesmo sendo a irmã com quem mais se entrosava.
- Isso já tem tempo. Por que ainda se pergunta?
- Por causa do preço que ele pagou e porque... bom, eu quero entender esta coisa do amor humano, da importância dele para estes seres... Você já o sentiu alguma vez.
Ele a encarou sério. Ela só podia estar brincando. Ela estava ali por curiosidade?
- Não sei explicar... você teria que entender as almas, os anseios, desejos... tudo que eles são. Por que não foi até Desejo? Talvez, ela (ou seria ele) pudesse explicar melhor?
Ela permaneceu quieta. Não, Desejo não estava de bom-humor, não depois do que Destino havia lhe feito, não depois de sua parte partida ter-lhe negado o que lhe era mais caro: o fim do amor eterno que haviam tido tanto quanto pudesse ter sido mantido.
- Você os entende?
Sonho olhou para as imagens que voavam por eles e observou imagens de assassinatos, perseguições, medo, angústia, amor, reencontros...
- Talvez! – ele respondeu com profundidade na voz. – O que exatamente você quer?
Ela fez uma cara de criança marota.
- Não! – ele disse com severidade. – Você sabe que interferir tem um preço!
Ela o olhou de soslaio.
- Eu não quero interferir.
Lá vinha o papo frouxo de “eu só quero entender...” e, no fim, ele estaria ao lado do mago, dando conselhos, quebrando maldições e enfrentando Destino de uma forma nada agradável. Desta vez, ele teria que ser firme com ela.
- Não vou interferir.
- Não precisa... é que... um deles... será que um breve momento? Nada?
Sonho suspirou. Era impossível tirar uma idéia da cabeça dela por mais que tentasse.
- Sem quebrar regra alguma... apenas em seu mundo. Digamos que é o pedido alguém prestes a fazer a grande travessia.
O pedido de alguém que morre. Poético e belo! Triste e louvável! Ele enfiou a mão no bolso. A chave ainda estava em seu poder e já haviam oferecido tanto por ela... mas, ele não havia decidido o que fazer com ela até que ele olhou para Morte de uma maneira singela. Havia sido um presente de Arcângelo para ele, um agradecimento. Ele ainda não havia cobrado seu preço. Ele retirou a chave do bolso e a prendeu em uma delicada corrente retirada de uma teia de sonhos e a pendurou, passando para a irmã de modo displicente.
- Tome! Ela fará com que entenda melhor.
Ela pegou e olhou a chave prateada e a pendurou no pescoço. No momento em que a chave encostou em seu peito, ela entrou no seu coração e ela se esticou de olhos fechados apenas absorvendo os seres humanos, entendendo seus sentidos e sentimentos. O tempo curto era o que fazia com que se movessem. Ela segurou a mão do irmão em agradecimento e ele a deixou solta.
- Eles podem se encontrar em um sonho e é tudo que lhe posso prometer, Morte.
Ela sorriu.
- Era tudo que precisavam.
Então, ele entendeu.
- Qual dos dois está em coma?
- A mulher! Venha.

Ele estava em um quarto de hospital como qualquer outro e o corpo de uma mulher jazia em cima de uma cama, ligado a aparelhos que apitavam. Não havia mais ninguém ali. Nenhum anjo. Nenhum demônio. Ele olhou para trás e percebeu que estavam em um lugar onde a Morte reinava. Finalmente, eles estavam em um prado verdejante. Uma mulher de saia vermelha destoava do verde brilhante, ela encarava algo à sua frente. Ele se aproximou sentindo uma brisa suave pousar sobre sua pálida face.
- É bonito aqui. – ele disse.
Ela não se virou.
- E então?
Ela era direta.
- Ela disse que tenho a opção rápida de partir e a opção sofrimento enquanto estiver ligada ao corpo. É lógico que sei disso tudo, mas, eu gostaria de dizer adeus e isso depende de você permitir...
Ele pensou em todas as vezes que almas estavam perturbadas porque não haviam tido a chance de dizer adeus, porque... e muitos outros haviam feito este pedido e ele havia concedido. Por que com ela parecia ser diferente? Por que ele hesitava naquele instante? Seria porque ela conhecia outros mundo e poderia... A irmã pousou a mão delicadamente sobre seu ombro.
“Não! Ela não vai usar seus talentos!”
Então, a paisagem foi se modificando para um lugar negro e profundo, para uma cidade destruída e destroçada. As pessoas andavam como zumbis e alguns poucos pareciam fugir de seres imaginários.
- Onde estamos? – ela perguntou assustada.
Ele não precisava responder. Ela percebeu logo que estavam em um sonho.
- Aqui? Você não poderia ter feito algum lugar menos...
Ele sorriu ironicamente.
- Você pediu uma despedida apenas e este é o sonho dele. O sonho que ele tem noite após noite após noite... O que você queria? A partir daqui, é com você. Só a guiei e seja breve.
Ela o encarou com raiva.
- Eu serei. Não se preocupe.
Ela começou a caminhar por entre os destroços. Teria que contar apenas com o que tinha no coração para alcançá-lo e, logo, no meio do caos e do armagedon, ela o encontrou debruçado sobre um corpo queimado. Ele chorava desesperadamente com uma angústia pouco comum.
- Não... não... não... – ele gemia.
Ela o tocou no ombro.
- Acorde! – ela disse. – Não tenho muito tempo.
Ele pareceu não ouvir e continuou debruçado. Ela lhe deu um tapa forte no rosto e ele pareceu entender que algo estava acontecendo. Ela sorriu e o levou para o gramado. Ele pareceu recuperar um pouco do senso e estava vestido de acordo.
- Estamos em um entre mundos, Arcângelo. Sinta o cheiro, a brisa...
- Por que meu sonho se modificou?
Ela suspirou tristemente.
- Porque foi uma espécie de último pedido.
Ele a encarou surpreso e a abraçou com força e com vontade. Depois, segurou o rosto dela entre suas mãos, incrédulo.
- É o fim?
As lágrimas surgiram no rosto dele sem que ele pudesse impedir.
- Não, você sabe que não é o fim. É só a carcaça que está quebrada... o que temos... ninguém nunca vai poder tirar... não é?
Ele continuava a abraçá-la com força.
- Mas...
Ela se afastou um pouco e encarou os olhos dele.
- É melhor assim. Nós não podíamos ter um ao outro por causa de nossas escolhas. Anos sem nos ver e ainda sentindo queimar o desejo... isto não era justo, era?
- Não... mas, ao menos, eu podia esperar.
Ela o abraçou e, finalmente, disse a frase que tanto temeu dizer enquanto estava viva.
- Eu amo você, Arcângelo. Sempre amarei.
- Eu... também... amo... você...

Sonho esperou o momento e devolveu Arcângelo ao sonho dele enquanto a irmã cuidava de Dandara. Ele as viu sumir no limiar de seu mundo e observou atentamente o que seguia no mundo dos homens.

Os aparelhos que mantinham Dandara viva pararam de apitar e a hora de sua morte foi decretada. Em outro canto do mundo, Arcângelo acordou e entendeu o adeus da amada. Apenas pegou o telefone e ligou um número que servia apenas para casos extremos.
- Por que não me avisou?
- Achei que não fosse necessário. – a voz disse friamente do outro lado. – Iria atrapalhar a missão.
Arcângelo estava irritado por não ter podido dizer adeus a Dandara e sabia que não podia simplesmente abandonar tudo aquilo porque haveriam conseqüências desastrosas. Ele havia feito uma promessa há muito tempo atrás.
- Por que não... – ele engasgou.
- Porque atrapalharia suas missões. Vamos, Arcângelo! Tenha tento... Cumpriu sua missão?
Sim, ele havia matado a mulher maldita, a última vândala dos espaços entre dimensões. Desligou o telefone e, pela primeira vez, em uma centena de anos ele deixava as lágrimas correrem. Ele era eterno. Dandara era humana. O que teria que fazer para que a Morte se aproximasse dele?
Sonho observou a cena impassível. Humanos! Quem os entende?

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