quarta-feira, novembro 08, 2006

MORTE

MORTE
Dandara encarou a noite pela janela. Ele estava atrasado. Sempre atrasado e enrolado. Não haveria muito tempo e ele estava atrasado. Finalmente, um vulto apareceu no escuro. Um homem de cabelos castanhos e olhos azuis veludo escuro a encaravam. Havia um corte em seu rosto e ela passou a mão no corte.
- Onde estava?
- Aqui e ali, você sabe.
- Alguma aventura envolvendo alguma dama em perigo, imagino.
- Dandara, pare com o ataque de ciúmes.
Ela fez bico. Não que pudessem retomar o que havia acontecido no passado. Eles se amavam e isso era certo. Mas, o tempo e suas missões, diferentes como água e vinho, haviam feito com que se afastassem. A moça de cabelos densos e negros os observava com a imensidão de seus olhos. Ainda estava escondida. Eles a esperavam para perguntar coisas que só ela sabia e que era primordial para eles. Ela sorriu e tudo estava como deveria estar. Magos poderosos estavam se unindo, isto é, as almas estavam se encontrando e se juntando novamente. Um novo fim estava para começar. Ou seria um novo começo? Bom, para a moça encostada na parede não fazia diferença. Sonho estava ao seu lado apenas para lhe fazer alguma companhia.
- E aí, mana? O que está pegando?
Ela sorriu.
- Tenho que esperar.
Eles poderiam ter sido irmãos gêmeos: a mesma pele pálida, os cabelos negros azulados, os olhos profundos e escuros. Sonho cruzou os braços sobre o peito.
- Tem mesmo?
- Ah! Você é muito impaciente! Não precisa ficar...
- Estou curioso porque eles são...
Ela deu de ombros.
- Sim. Eles são o que você está insinuando e estão prestes...
Sonho a olhou surpreso.
- Amor acaba?
Ela deu de ombros.
- O que você me responderia?
Sonho não gostou do que a pergunta dela implicava. Eles continuaram a observar os magos e seus preparativos para encontrar o mundo suspenso dos espíritos.

Dandara riscou o pentagrama no chão com giz sem muita vontade e bufou.
- Por que nós dois? Por que a Ordem disse que tinha que ser nós dois?
Ele a encarou com uma certa pena. Era o preço que tinham que pagar pelo conhecimento.
- O que você acha?
- Porque se eu me perder, você seria o único capaz de me encontrar porque nossas almas compartilham o mesmo selo.
Adonis pode perceber uma pequena lágrima no olho dela e não se manifestou. Dandara tinha a tendência a se apegar demais às pessoas de sua vida. Ela se sentou no meio do pentagrama e colocou as ervas e os elementos perfeitamente em cada ponta da estrela com um certo desapontamento. Adonis estava cauteloso e checava tudo detalhadamente. Ele não poderia demonstrar o quanto aquela missão o atingia de forma angustiante. Dandara era e sempre seria um pedaço dele, um pedaço que buscava desde que os deuses haviam separado as almas como Platão descrevia. Havia séculos que um sentia fome pelo outro, um desejo quase desajeitado e afobado que o tempo jamais apagara e aquele momento seria a prova concreta de que tudo poderia se desvanecer. Dandara retirou as roupas menos as cobras de metal dourado que cobriam seus braços. Era parte da força da grande sacerdotisa que era. Ela se deitou no chão como nos desenhos de da Vinci e cerrou os olhos. Ela sabia que ele gostaria de ter lhe dado um beijo antes. Mas, o círculo estava fechado e ela precisava se concentrar. Adonis circundou a estrela entoando o feitiço e Dandara sentiu o vapor a levar. Em um outro instante, ela estava na sala da casa dela mas não estava lá como nos sonhos que ficam dentro de sonhos...

Uma moça bonita de cabelos negros e olhos profundos sorriu para ela, uma moça de calça jeans, camiseta escura com alguma estampa brilhante, um ank no pescoço. A moça se sentou com as pernas cruzadas displicentemente.
- Por que me chamou? Você sabe... todo fim tem haver comigo...
- Qualquer fim?
A moça parou para pensar um pouco.
- O que tem em mente?
- A maldição de Totham... no Egito Antigo...
A moça do cabelo preto assobiou espantada. Era algo inesperado.
- Hum... eu não faço encomendas. Tudo tem sua hora. Você sabe. São as regras.
Dandara sorriu tristemente.
- Eu sei disso. Mas...
- Não me meto em assuntos humanos. Você deveria saber disso.
Dandara desistiu. Havia valido, ao menos, tentar. Muitos envolvidos estavam mortos e amaldiçoados. O tempo e o destino tomaria conta de tudo no tempo certo. Ela não estava suspensa no estado de quase morte apenas para tentar acabar com uma estúpida maldição. Sua missão era outra.
- Preciso que me leve ao mundo dos mortos.
A moça franziu a testa. Ela sabia que Dandara não era uma bruxa de poucos poderes até mesmo pelos segredos que guardava e por ser guardiã de coisas grandiosas. O que ela buscaria aonde as almas repousavam?
- Eu não sou nenhum guia. Você bem o sabe... Eu apenas estou por perto para as direções.
- Preciso ir até o barqueiro. Trouxe tudo de que preciso comigo.
Ela encarou a jovem à sua frente.
- E você não vai me enganar, não é? Tipo... você não vai resolver a maldição...
- Não! – Dandara respondeu tristemente. – São outras razões.
- Trazer alguém de volta?
Dandara suspirou.
- Não! Também não! – vencida pela moça de olhos penetrantes nada mais restava a não ser dizer a verdade. – Só preciso perguntar uma única coisa a uma alma que lá se encontra. Apenas ela tem a resposta e caso eu falhe... bom, terei falhado com um mundo.
A moça vislumbrou a morte de um mundo bom, belo e especial. Vislumbrou que era chamada e que, em breve, tudo estaria morto. Ela suspirou.
- O fim está próximo, você sabe... Eu não posso impedir.
Dandara deu o primeiro sorriso esperançoso.
- Mas, eu posso!
Uma sobrancelha da moça arqueou e ela olhou para o homem de cabelos negros e de olhos que continham estrelas.
- Está bem. Mas, você sabe, quanto mais ficar lá, mais sua vida corre perigo... o barqueiro não é alguém muito simpático, aviso logo.
- Não preciso de simpatia. A ruptura de um mundo como este pode trazer sérios problemas para a humanidade. Um desequilíbrio que nenhum dos seus vai gostar muito... Será um verdadeiro desastre para ele. – disse encarando Sonho. A irmã mais velha olhou Sonho por sobre os ombros.
- Muito bem, então. Segure minha mão e vamos passear.
Enquanto Dandara segurou sua mão como se fosse uma criança, milhões de imagens apareceu para ela: bruxas que pareciam ser ela mesma, pobres infelizes, crianças maltrapilhas. Mal teve tempo de respirar enquanto as imagens apenas apareciam uma depois da outra.
- Você sabe o que está vendo?
Dandara assentiu com a cabeça. Ela sabia. Continuaram em silêncio até que se encontraram no píer de madeira perto de águas escuras, densas e perigosamente calmas. O barqueiro se aproximou ao ouvir o assovio da jovem.
- O que deseja, senhora?
A moça apontou para Dandara. O homem sorriu de modo pérfido e estranho.
- O último humano jamais voltou... Ei! Você é... – ele se surpreendeu.
- Sim. Eu sou quem você acha que sou. Vamos! Tenho pressa.
O barqueiro assentiu aquela passageira solitária enquanto Morte acenava para ela. Sentou-se no píer para esperar. Sonho se aproximou e permaneceu de pé.
- Por que fez isso?
- Porque é o destino dela. Vá cuidar do homem. – ela disse com alguma secura. Era tudo que tinha para fazer embora seu trabalho exigisse. A morte não era o fim eterno que muitos acreditavam ser, mas, havia um mundo para onde os mortos iam por um tempo para se acostumarem com a outra vida, uma espécie de spa, não exatamente no melhor sentido do termo.

Dandara ficou em silêncio durante sua jornada até a outra beirada daquele estranho mundo. O barqueiro a ajudou a descer e ela pagou a moeda.
- Espere aqui! Eu voltarei.
O barqueiro riu.
- Todos dizem a mesma coisa.
Ela o encarou com firmeza.
- Eu voltarei! – ela disse com firmeza na voz.
Então, de dentro do manto, ela retirou o cristal em forma de crânio que trazia consigo. Não era exatamente enorme, mas, perfeitamente esculpido.
- Muito bem! – ela gritou. – Venha!
Um homem encarquilhado surgiu. Seus dentes podres mostravam um sorriso falso e ela sabia que deveria enfrentá-lo.
- Eu vim em nome de Atlântida e você sabe porque estou aqui.
Ele sibilou uma gargalhada.
- Você destruiu mundos atrás de mundos por causa de sua sede insaciável pelo poder... tenho o que há de mais poderoso aqui. – apontou para o crânio no chão. – E o segredo absoluto do poder. Só quero uma resposta e você sabe a pergunta.
O velho sorriu de um modo nojento, aproximando-se e tocando Dandara.
- Preciosa... preciosa... tudo isto apenas para uma pergunta tola?
Dandara teria que ser paciente.
- Você sabe que não é tola. O conhecimento está no crânio e você o deseja desde tempos imemoriais. Se Agadaron não o tivesse trancado aqui, eu o teria feito de uma maneira muito pior.
Ele riu malevolamente.
- Mas, aprendi muita coisa aqui.
Ela levantou o pé em direção ao crânio.
- Não! – havia uma súplica em sua voz disfarçada.
- Primeiro, o crânio.
- Não! Só eu tenho a chave... o que você fez?
Ele sorriu.
- Você sabe... eu sugo. Sou um buraco negro...
- Não. Você fez muito mais do que apenas sugar.
O pé dela estava sobre o crânio. Ele se aproximou como uma cobra ligeira, imaginando uma forma de impedi-la.
- Você quer mesmo saber, não é?
Ela tinha algumas suspeitas, mas, precisava da confirmação e antes mesmo que ele pudesse responder, ela viu algo nos olhos dele, um brilho que uma criatura vil como aquela não deveria ter... ele havia engolido a essência da vida que ela tentava desesperadamente manter viva. Ele percebeu e se jogou sobre o crânio que ela destruiu.
- Não! – ela gritou. – Eu não vim barganhar! Você está morto.
Ele sorriu com fúria.
- Você não pode me matar. Eu já estou no mundo dos mortos e eu aprendi uns truques por aqui... – ele sorriu ainda de forma macabra ao encostar as unhas afiadas e podres em sua pele. – Você sabe... eu ainda sei usar venenos.
No entanto, Dandara trazia o punhal de todos os tempos, roubado dos elfos eternos e cravou na criatura ao mesmo tempo que aquele ser malévolo lhe arranhava a pele com um veneno mortífero do mundo dos mortos. Ao cravar-lhe o punhal, uma mulher esplendorosa saiu de dentro do homem pelos seus olhos e Dandara sorriu ao perceber que o fim não havia chegado, de que havia uma chance.

Uma moça de cabelos negros surgiu no foco de sua visão quando ela abriu os olhos. Nada parecia ter mudado.
- Muito esperta, moça! Quanta insolência!!! – a moça dizia com alguma revolta.
- Lamento! Mas, foi preciso... estou morta???
A moça suspirou.
- Não! Descanse.
Dandara fechou os olhos e sonhou com um mundo verdejante e feliz. Finalmente, ela se sentiu cair e aterrissou em um corpo retorcido pela dor, angustiado pelos sentimentos e gritou como se todo o inferno estivesse no corpo dela. Ela se acocorou, babando, defecando e vomitando, sentindo seu corpo ser queimado como nunca antes. O veneno do velho fazia efeito ainda em seu corpo, mas, algo a havia trazido de volta. Finalmente, ela mergulhou novamente no escuro, onde se viu em uma bolha dourada suspensa em postura fetal e descansou.
Um raio de sol atingiu seus olhos e ela acordou revitalizada e cansada. A última das grandes batalhas de uma guardiã da velha Atlântida. Adônis segurava seu corpo por perto como se ele pudesse salvá-la de si mesma. Ele a observou com novas rugas, uma expressão mais velha e uma mecha branca assomou-se em seu cabelo.
- Você envelheceu! – ele disse surpreso.
- Paguei o preço. – ela disse.
Ambos se abraçaram.
- Acabou, Adonis.
Ele assentiu tristemente. Mais uma vez, separados pelas próprias escolhas. Não se veriam nunca mais. Havia sido uma emergência e só ele sabia o inferno que passara para resgatá-la do mundo perdido em que havia se encontrado. Ele trazia uma nova cicatriz no seu corpo, uma que jamais partiria. Ele doara seu sangue mágico no outro mundo para salvar Dandara. Estava quase se esvaindo quando ela voltou para os braços dele. Dandara havia envelhecido mais de duas décadas para não deixar o mundo da magia real morrer. Ele viu a moça de cabelos negros por perto.
- Eu sou o fim. Eu sou o recomeço de tudo. Vocês não deviam temer o fim...
Ele a encarou.
- Não! Não deveríamos! Mas, você sabe... agimos de acordo com nossos Destinos.
Ela deu de ombros e sorriu amigavelmente.
- Agradeça a ele!
- Agora, você deve um favor a ele... e eu não sei se é uma boa coisa. Mas, enfim, o amor de vocês, humanos, é algo estranho... porque, na verdade, você deveria saber... nunca acaba!
Ela partiu e Sonho estava com ela.
- O que vai pedir para ele fazer?
- Ainda não sei.
Ela observou o delicado objeto de prata que ele entregara a Sonho.
- Ora! Um selo que abre todos os portais de todos os mundos! Que engraçado! Você realmente gosta de se meter em encrencas!
Ele a encarou surpreso.
- Não é a mesma coisa que ter a chave do inferno.
- Não! Realmente, não... mas, sua alma está a prêmio de novo. Todos vão querer esta chave porque ela não abre apenas os portais... ela também dá acesso a todas as almas...
- Shhhhhhhhhh! – ele fez. – Não fale em voz alta. Decidirei o que fazer no tempo certo.
Ela deu de ombros. Novas charadas e o dever a chamava. Muitos ainda esperavam por sua bênção.

Nenhum comentário: